[title]
Não é novidade que “a rádio corre um grande risco de homogeneização, tanto no tipo de música que passa como no discurso”, diz Luís Bonixe, professor no Instituto Politécnico de Portalegre, com investigação na área das rádios pirata, locais e digitais. A contrariar esta lógica do padrão e do algoritmo, têm surgido pequenas rádios a emitir para o mundo a partir de apartamentos, lojas e quiosques improvisados.
Do Prior Velho, Arroios ou Tapada das Mercês, passam música electrónica, funk, punk, rock, inclassificável, que não chega ao Spotify, conversas com DJs, merceeiros e professores do ensino preparatório. É o caso da Quântica, que nasceu há oito anos em Londres, inspirada pela NTS Radio, projecto que abriu uma frequência muito para lá do FM, num “quiosquezinho” de Hackney, ao dar espaço a músicos independentes, em proximidade com os ouvintes. Em 2020, 2,5 milhões de pessoas ouviam a NTS todos os meses, segundo o Financial Times. Em Outubro deste ano, uma parte do projecto acabou nas mãos da Universal.
A Quântica arrancou com o mesmo espírito. “Somos da área da música, mas não ouvíamos os nossos pares nas rádios mainstream e queríamos mostrar esta rede ao mundo”, explica Inês Pereira Coutinho. Ela, que tinha passado pela Antena 3, juntou-se a Marco Rodrigues, ex-Oxigénio. Montaram um set básico em casa, convidaram amigos para criarem os seus “programas de autor, muito livres” e ensaiaram uma nova abrangência no universo radiofónico. “Esse elemento do caos é muito interessante no tempo em que vivemos, onde tudo é muito homogéneo”, afirma Inês. Em 2016, o Teatro Praga cedeu-lhes um pequeno espaço na Rua das Gaivotas, em Lisboa, para onde a rádio avançou. “Até tínhamos um programa com o Hugo van der Ding, quando ele ainda não era conhecido.”
A música — em grande parte electrónica mas também de outros géneros e anti-géneros — está no centro da Quântica, uma das rádios comunitárias que mais tempo se tem aguentado no ar em Portugal, mas a forma como a rádio actua é política, na luta contra a exclusão, dentro e fora do estúdio. “Somos de esquerda, falamos sobre solidariedade de classes, feminismo... Vejo uma rádio comunitária como uma forma de resistir ao que é hegemónico, de hackear o sistema”, afirma Inês. Ao mesmo tempo, criar a Quântica permitiu esbater diferenças no interior da cabine. “Fez com que pudéssemos tocar com material de som a sério, ainda que do mais básico, porque tudo é muito caro nesta área.”
Hoje, a Quântica emite desde o Prior Velho, no escritório do Planeta Manas, espaço de dança onde Inês é Violet (DJ) e também co-fundadora. É um estúdio de nove metros quadrados, com cartazes nas paredes e um “espírito muito do it yourself [DIY]”. O que dali sai tem mais de 10 mil seguidores, através das redes sociais. Desde 2015, produziu mais de 100 programas, contou com 170 artistas residentes, fez festas no Lux e eventos na Livraria Barata, e criou um festival, o Ano 0, repartido entre Lisboa e o Barreiro. Ao mesmo tempo, houve gente que mudou de vida, casou, emigrou, foi para o FM e para clubes lisboetas. E a rádio continua a emitir durante 24 horas, nos sete dias da semana.
O propósito da Rádio Paranóia, criada num apartamento de Arroios, foi mais ou menos o mesmo — dar espaço a artistas com pouca visibilidade —, mas o timing foi outro: a pandemia. “Andávamos a bater com a cabeça nas paredes e surgiu o nome ‘paranóia’”, explica João Horta, fundador do projecto. A ligação à rádio fez-se nos tempos de Almada, onde cresceu e começou a colaborar com a também comunitária Ophelia, um canal “a 2800 milhas pela maionese”, como o próprio se apresenta. Anos mais tarde, quis voltar a fazer rádio. “Montei uma coisa muito arcaica, no escritório de casa, a partir do meu computador.” No início de 2021, ia para o ar o primeiro Good Morning Horses, onde o professor de informática dá pistas sobre o tempo, passa blues ou põe Annette Peacock, pioneira no uso de sintetizadores, a cantar “I love my poney”. Meses depois, com a chegada de um chat à Paranóia, o programa transformou-se numa comunidade online que reagia em directo. “Alguns de uma forma muito fiel.”
O que começou por ser um projecto temporário, da pandemia, passou a envolver “muita gente”. “Já não dava para parar.” Chegaram a música ambiental seleccionada por Carolf (DJ habitual no Cosmos), o improv, o experimental, o black metal e o lado curvo do programa Spiritual Tarraxo, de Ugly Cat (Catarina Monteiro, fundadora da Corrente Arroios). Ninguém ganha dinheiro com a Paranóia, mas todos encontram nela um lugar onde podem fazer o que gostam. Em pausa desde Julho, a rádio voltou a estar no ar a 1 de Dezembro, com uma festa no Ócio e programação ininterrupta.
Portugal sem legislação para rádios comunitárias
Em 2020, Miguel Midões, jornalista na TSF, decidiu investigar a subcultura das rádios comunitárias, uma categoria inexistente, de forma oficial, no país. Contabilizou 21 projectos (maioritariamente em Lisboa e no Porto) e escreveu que, em 2012, “Portugal integrava a lista dos 10 países da UE sem qualquer legislação ou apoio financeiro a este tipo de emissoras”. “Quase uma década depois, nada mudou”, apesar da pressão internacional em defender um segmento com ferramentas para “reforçar a cidadania” e criar “redes nas quais os indivíduos se relacionam”, através de uma proximidade geográfica, mas também “motivacional e afectiva”. Em Julho deste ano, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) propôs a criação do estatuto de rádio comunitária e apelou à Autoridade Nacional de Comunicações (Anacom) que disponibilizasse micro-frequências, para que pudessem também actuar no espaço hertziano.
Para o professor Luís Bonixe, o interesse sobre as rádios comunitárias pode estar relacionado, por um lado, com o esmorecimento das rádios locais (por questões económicas e porque muitas frequências foram compradas por grandes grupos, nos últimos anos) e, por outro, com a facilidade em produzir conteúdos áudio e disseminá-los através da internet. “Na altura das rádios pirata [anos 80], era preciso ter jeito para ligar uma antena. Agora é preciso aprender a usar ferramentas informáticas e plataformas da net. A rádio é um meio fácil, ágil e barato e isso tem um grande peso em termos sociais”, analisa Bonixe.
O “barato” inclui, ainda assim, algumas reservas. No caso da Lusophonica, rádio-café que emite desde 2021 junto às ondas nada hertzianas de Cascais, “a rádio chama gente, sim, mas é um gasto”. “Sem ela já tínhamos um carro novo”, brinca Pedro Avillez Costa, co-fundador do projecto. Na cafetaria do Farol de Santa Marta, desenhada pelos arquitectos Aires Mateus e vazia há anos, Pedro, que é agente de artistas, abriu com Nuno Rodrigues, DJ e amigo de longa data, um café com esplanada voltado para uma cabine de música. Entre o streaming, direitos de autor, armazenamento e outras despesas, como copos aos DJs convidados, a Lusophonica representa um custo de 40 mil euros por ano. Mas Pedro e Nuno queriam muito criar um ponto de encontro das culturas lusófona e lisboeta (com tudo o que Lisboa é hoje) e por isso seguiram em frente. “Queríamos mostrar a cena musical de Cabo Verde, Brasil, Moçambique e contribuir para criar uma identidade.” O café foi só uma forma de sustentar (financeiramente) esse impulso.
Com sets ao vivo todos os dias, entre as 10.00 e as 18.00, de “coisas mais chill” como cumbias ou reggae, mas também música clássica, a rádio recebe uma média de 70 DJs por mês. “Estamos a unir vários géneros, editoras e movimentos musicais, mas também países”, através da internet, resumem os sócios.
A internet local
A música fica no ouvido, mas, nos casos da Sintoniza-T e da Rádio Belém, é a informação, de forte cariz local, que protagoniza as emissões. A ideia é ir “à mercearia, às instituições e trazer pessoas para contarem o que fazem na comunidade, o dia-a-dia ou a história de imigração”, conta Alexandre Santos, da Sintoniza-T. A rádio funciona nas instalações da Associação Comunidade Islâmica da Tapada das Mercês e Mem-Martins, concelho de Sintra. Enquanto em frente, na mesquita, acontece a oração das 14.00, Alexandre prepara guiões para receber novos voluntários. “Queremos envolver mais a comunidade”, explica.
A Sintoniza-T surgiu sob o apoio do Bairros Saudáveis, programa público lançado durante a pandemia para impulsionar projectos sociais em territórios considerados vulneráveis. O financiamento durou um ano, mas Alexandre continuou a pegar no carro todas as sextas, o dia de folga do emprego num centro comercial, para sair de Lisboa e falar ao microfone, gravar e programar.
Neste momento, é o único voluntário, nunca tinha vindo à Tapada antes de conhecer a Sintoniza-T, mas isso nunca o afastou. Apesar de a rádio funcionar numa associação islâmica, não está presa a credos, nacionalidades ou partidos políticos. “É um espaço para falar de diferentes temas, em diferentes línguas, por pessoas de diferentes idades, profissões, religiões, tudo.” Há mais de 27 nacionalidades a viver na Tapada e a rádio focou-se nessa diversidade. No Minuto Cidadão, por exemplo, dicas sobre como fazer o IRS ou ter acesso a senhas para a Segurança Social chegaram a ser traduzidas em cinco línguas, do russo ao crioulo de Cabo Verde. “Além disso, as pessoas vêm cá e ganham novos skills. E podem expor as suas ideias.”
O mesmo acontece na Rádio Freguesia Belém, projecto da Junta de Freguesia, que funciona desde 2020 num antigo stand de imobiliário e conta com a participação de perto de 40 voluntários e 30 instituições. “Às vezes, eles sugerem temas e nós encaixamos nos programas. Outras, ajudamos a criar um programa desde o zero”, relata a coordenadora do projecto, Maria Cid.
Esta é uma oportunidade de aceder a informação local (o programa mais ouvido é a emissão da Assembleia da Junta) mas também de pessoas comuns experimentarem a criação e expressão radiofónica, como aconteceu a Joana Pereira da Silva. “Comecei com uma paródia sobre os influencers do Restelo. Gravo no telemóvel e a Sofia edita. Não faço ideia se tem audiência ou não. Mas sempre achei um piadão à rádio”, conta.
Além da vertente democrática, há também uma ponderação proporcionada pelas rádios comunitárias, segundo Maria Cid, já que permitem “comunicar de uma maneira menos impulsiva que nas redes sociais, onde se partilham opiniões sem pensar no impacto que isso pode ter do outro lado”.
O número de ouvintes da Rádio Belém está longe de ser esmagador: numa freguesia de 16500 habitantes, 200 pessoas ouvem a rádio a cada semana. Problemático? Como diz Luís Bonixe, “podem não ser muitas as pessoas a ouvir, mas quem lá está, está interessado”.
+ Cozinhas comunitárias e espaços para brincar: as novas cooperativas de habitação em Lisboa