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Culto pagão ou a expressão de uma espiritualidade individual? Coube a João Magalhães abrir o calendário de desfiles da 58.ª edição da ModaLisboa, na noite de quinta-feira. Ao apresentar "Venus and the Solitary Cloud", o jovem criador português voltou a contornar o formato convencional e ocupou um pequeno anfiteatro improvisado para o efeito, num dos pisos do Hub Criativo do Beato. Entre uma batida contagiante, transmissões em directo e uma performance audaciosa, a rave à la Magalhães conserva a energia, mas revestiu-se, por uma noite, de uma dimensão espiritual.
"Esta história foi construída ao longo de três meses", alerta o designer, decorridos poucos minutos do final da apresentação, marcada para as 21.00. Fala-nos de uma viagem à América Latina, onde a estadia se prolongou por mais de 60 dias. Voltou com memórias de um amor romântico, agora cristalizadas ao longo das várias camadas que diz comporem a actual colecção, mas sobretudo com uma reflexão feita sobre a própria espiritualidade. Da iconografia para a crença íntima, as referências voltaram a ser convertidas em matéria visual.
"As igrejas no México são fascinantes, visitei várias. São católicas e ao mesmo tempo pagãs. Sacrificam-se animais e há latas de Coca-Cola em altares. Na verdade, isso sempre me inspirou na cultura da América Latina — o quão viva a religião é, enquanto a nossa é uma coisa museológica. E é assim com tudo. A cultura deles é mais viva, mais plástica, mais improvisada", explica.
Plasticidade e improvisação não são conceitos alheios ao trabalho de João Magalhães, já desde o tempo em que se apresentava como Morecco, entre 2015 e 2017. Na noite de quinta-feira, essas características só saíram sublimadas. À extravagância cromática a que já habituou o seu público adicionou o carimbo do DIY — "centenas de latas de spray" foram usadas para tingir peças em ganga e até o vestido em organza de seda, aparição de nossa senhora que encerrou o desfile —, enquanto os tricots surgiram em modo patchwork.
Sem pudor em misturar mitos, figuras de fé e verdades astrológicas, Magalhães assume-se como um criador (e homem) de léxico livre, na moda e fora dela. "Ainda estava no México e dei por mim a pensar: porque é que, para mim, a religião é esta culpa católica, este peso ancestral, esta vergonha de usar certas coisas e de me apresentar de certas maneiras, e estas pessoas não têm esse problema? Houve um momento de ruptura interna", admite. O pós-ruptura trouxe os seus desafios, sobretudo o de transpor para a roupa uma nova resolução no universo do não tangível. "Sou uma pessoa muito espiritual, mas acho que é um bocado difícil expor o que sentimos dentro de nós de uma maneira visual sem que não pareça algo ridículo. Foi esse o desafio que lancei a mim mesmo".
Numa colecção que começou a ser desenhada noutro continente — com o designer a resistir à incorporação mais óbvia de elementos alusivos à cultura mexicana —, os acessórios e ornamentos são um dos pontos altos. Mais uma vez, a veia colaborativa de João Magalhães entrou em acção. "Primeiro, porque acredito realmente nas colaborações. Além disso, é a única forma de fazer coisas destas com o estúdio que tenho actualmente", refere.
O rol é extenso e começa com os botões de Marcos Haashorn, o mesmo a assinar a bijuteria pesada que deu brilho ao desfile. Uma Labattut bordou carinhosamente várias peças da colecção (com o seu signo e o do criador), enquanto Diogo Caeiro, na qualidade de flower designer, deixou a sua marca no cenário. Os estampados digitais são de Guilherme Curado. João Reis Moreira e Leonor Carneiro foram, além de coreógrafos, os performers de serviço, recorrendo a danças heréticas, filmadas e transmitidas em directo a partir de um telemóvel para um ecrã gigante no centro da sala.
Desde o primeiro dia que Magalhães tem a capacidade de fazer gravitar em torno de si uma comunidade de autores e artistas. Uma rede que, estação após estação, possibilita que um trabalho a muitas mãos chegue à passerelle, compilado na forma de uma colecção. No entanto, o sucesso da fórmula não abranda a vontade de ver a marca crescer. "O e-commerce está a ser desenvolvido neste momento. Estou finalmente a desenhar packaging, etiquetas novas, logotipos novos. Vou ter um atelier novo em breve, que espero que seja também showroom e, eventualmente loja", revela.
Por fim, o lado prático do designer salta à vista. Entre texanas pintadas com spray, máscaras e luvas decoradas com pendentes, há uma colecção de pronto-a-vestir à espreita. Destaca precisamente os "fatos de cowboy com três peças" e os "mesh tops compridos" — tudo para dizer que "há formas de usar isto sem parecer um deus ou um diabo".
A 58.ª edição da ModaLisboa continua a decorrer esta sexta-feira, no Hub Criativo do Beato. Para o segundo dia, está marcada a final do concurso Sangue Novo e desfiles de Duarte, Béhen e Kolovrat.
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