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Nesta casa de giz, Marco Martins recebe quem não tem para onde voltar

'Blooming' parte da experiência de um grupo de jovens que vive numa instituição de acolhimento. Estreia este sábado, no São Luiz.

Beatriz Magalhães
Escrito por
Beatriz Magalhães
Jornalista
Blooming
© Nuno Lopes Blooming
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No chão, as linhas a giz desenham casas, pessoas, histórias, infâncias, e sonhos. Sob o pó que se levanta, os traços vão-se apagando e as cores vão-se desvanecendo, as casas desaparecem, as pessoas perdem os rostos, mas ficam as histórias. Quem as conta levanta os pés, levanta os braços, deita-se, dança, corre em direcção a algo que, às vezes, lhe parece escapar por entre os dedos. Porque, apesar de a idade não ser muita, a vida que levam podia contar em si mais do que muitos anos, e, ainda que carreguem consigo tamanho cansaço, eles continuam a correr. Correm, dançam, deitam-se, levantam os braços, levantam os pés, na esperança que os espere um amanhã bom, ou pelo menos, melhor. Aliás, que os espere um futuro pelo qual valha a pena viver, um futuro que os leve a casa. É em Blooming que Marco Martins procura pôr o holofote sobre os jovens que, longe das famílias, navegam rumo à casa que nunca conheceram. 

Na sala de ensaios, as marcas no chão de tijoleira e os cartazes com ideias e conceitos colados nas paredes denunciam o trabalho ali feito nos últimos cinco meses. O convite veio do European Odyssey – Creative Europe e, em torno do universo de Ulisses, de James Joyce, a ideia era criar uma peça de teatro. A cada projecto artístico foi atribuído um capítulo do livro e, a Marco Martins, calhou o capítulo 16. No regresso a casa, Leopold Bloom e Stephen Dedalus encontram-se a pernoitar num abrigo, onde conhecem marinheiros e um sem-número de personagens. Em palco, é feita uma releitura desta parte da história à luz das vivências de um grupo de jovens que vive numa casa de acolhimento, levando-nos a reflectir acerca do envelhecimento, da infância, de sonhos, esperanças, medos, e angústias. “Portugal é um país que tem muita facilidade em colocar crianças em instituições e tirá-las da família e, portanto, é uma situação que eu acho que é muito violenta e muito invisível ao mesmo tempo, ou seja, o conhecimento que temos sobre a quantidade de crianças que estão nestas instituições e como é de facto o seu dia-a-dia e de que forma é que isso é vivido. Acho que está muito fora da esfera dos media”, diz Marco Martins, após um ensaio. 

Blooming
© EGEAC – Teatro São Luiz, Estelle ValenteBlooming

 

O elenco é formado por jovens, entre os 12 e os 16 anos, do Instituto dos Ferroviários, instituição de acolhimento de crianças e jovens, retirados à família por ordem do tribunal, situado no concelho do Barreiro. À excepção de Caetano Machado, para Fátima Costa, Halia Silva, Ian Parada e Liria Costa, a experiência de viver na instituição torna-se veículo para abordar um lugar que, para eles, tem um significado diferente. “Para muitas destas crianças existe ainda esse horizonte de regressar a casa.” Por outro lado, há essa “importância de construíres a tua própria casa para onde possas voltar, mas é verdade que esse regresso a casa para algumas destas crianças é praticamente impossível ou não desejado.”

Quando ela nasceu, a mãe não sabia que estava grávida até entrar em trabalho de parto, conta Fátima. Um dia, estava na escola, a mãe liga-lhe para voltar a casa, “a Segurança Social está aqui”. No mesmo dia, é levada para uma instituição, conta Halia. Viveu com os pais, chegou a viver com o avô. As casas, maiores ou mais pequenas, foram muitas, conta Ian. A várias vozes, contam-se fragmentos de diferentes realidades, algumas biográficas, outras ficcionalizadas, que pretendem tornar estas histórias de todos. A partir também de um conjunto de referências, como Annie Ernaux, B Fachada, Charles Dickens e Djaimilia Pereira de Almeida, o espectáculo vive de um fluxo de consciência, que possui outras tantas dimensões. Ora manifesta-se através de movimentos corporais, ora através dos desenhos e riscos que vão ganhando forma cada vez que um dos intérpretes pega num pedaço de giz.

Blooming
© EGEAC – Teatro São Luiz, Estelle ValenteBlooming

 

A ideia de trajecto, de caminhar em direcção a algo, esteve presente desde o início, acabando por dialogar directamente com a ideia de envelhecimento e de futuro. Daí, nasce a vontade de ter em cena um sexto intérprete, neste caso, Robert Elliot, de 61 anos. Com base na experiência de vida “não linear” do actor, que também entrou no filme de Marco Martins Great Yarmouth: Provisional Figures, surge uma figura que é representada como um par perante os jovens. “É uma pessoa que eu sei que não tem um olhar de julgamento, talvez por essa vida, e que era uma coisa que eu não queria, nem um professor, nem um sábio. Queria alguém que fosse como eles, ou seja, que tivesse o mesmo peso, só que tem 61 e eles têm 12 ou 16, mas que lhes pudesse falar do que é ter 61 sem ter um lado de conselho, ou de sábio, ou de guia, queria uma verdadeira partilha”, explica o encenador.

Neste sentido, surge também daqui a ideia de projecção no futuro, em que, um a um, os jovens percorrem uma linha de giz desenhada por eles no chão e que os leva a um determinado ponto da sua vida. Aos 25, 35, aos 45 anos, partilham como será a sua vida, tarefa esta que, face a um presente instável, nem sempre é a mais fácil, mas que se torna necessária e até essencial para a criação de um porto seguro, em que estes jovens reclamam a sua infância e aquilo que perderam ao longo da sua jornada. “Acho que é a grande conquista deste trabalho, esta criação de um sítio onde nós podemos criar em conjunto, trabalhar em conjunto, onde se pode confiar no outro.”

Blooming
© Nuno LopesBlooming

“Blooming” significa florescer, desabrochar, mas também significa radiante e resplandecente. Aqui, “blooming” não significa radiante, nem florescer, significa seguir, continuar, caminhar, e encontrar. Seguir em frente uma infância conturbada, continuar a sonhar, caminhar para um futuro melhor, e encontrar uma casa, um porto de abrigo, um lar. Mudassem os jovens, ou mudassem as suas experiências, quem sabe, talvez “blooming” significasse resplandecente. Para estes jovens, cobertos do giz que antes punha de pé uma casa inteira, Blooming é parte da sua história, é a casa que edificaram juntos.

São Luiz Teatro Municipal. 8-16 Jun. Qui-Sáb e Seg 20.00, Dom 17.30. 12€ (Esgotado)

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