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Nestas ‘Manhãs de Setembro’ uma mulher ostracizada canta até ao fim

‘Manhãs de Setembro’ centra-se numa mulher trans surpreendida com um filho. Antecipamos a série brasileira, que se estreia sexta-feira na Amazon Prime Video.

Hugo Torres
Escrito por
Hugo Torres
Director-adjunto, Time Out Portugal
Televisão, Séries, Drama, Manhãs de Setembro (2021)
©DRManhãs de Setembro de Josefina Trotta
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“Eu demorei 30 anos, dois meses e 19 dias para ter um lugar só meu.” Ei-lo finalmente: uma kitchenette minúscula num bairro humilde de São Paulo, para onde Cassandra se mudou em busca de um sonho. Um quarto, a bem dizer, pintado de fresco, que exibe ao namorado com a alegria de uma conquista. Hoje dorme sozinha, lutou por isso – e por muito mais. Cassandra é uma mulher triplamente ostracizada: é negra, é trans e é pobre. Quer ser cantora, seguindo as pisadas de Vanusa, artista de muito sucesso no Brasil nos anos 1970 e cuja voz ecoa na sua cabeça sempre que algo põe em causa o caminho que traçou para si e para a sua carreira, alertando para o desvio e insistindo na correcção da rota. Não como um grilo falante, como uma mãe. É ela que repete aquela mesma frase – “você demorou 30 anos, dois meses e 19 dias para ter um lugar só seu” – quando Cassandra decide dar guarida (“só por um dia”) a Leide, que já não via há mais de dez anos, e a Gersinho, o filho de ambas que não sabia existir e que acaba de lhe bater à porta.

Criada por Josefina Trotta, Alice Marcone e Marcelo Montenegro, Manhãs de Setembro estreia-se esta sexta-feira, 25 de Junho, na Amazon Prime Video. Cassandra é o primeiro grande papel de Liniker, ela que é um dos fenómenos recentes da música brasileira, em particular da música negra (que já passou por Portugal, com os seus Caramelows). Uma estreia partilhada com uma antiga companheira da Escola Livre de Teatro, que também ascendeu a estrela interdisciplinar e tem aqui uma participação especial: Linn da Quebrada. Não é de estranhar, portanto, que a música seja um elemento central desta produção da O2, que além de pedir o título emprestado à canção mais popular de Vanusa (“Fui eu que se fechou no muro e se guardou lá fora/ Fui eu que num esforço se guardou na indiferença/ Fui eu que numa tarde se fez tarde de tristezas/ Fui eu que consegui ficar e ir embora/ E fui esquecida, fui eu”, canta em “Manhãs de Setembro”, do álbum homónimo, de 1973), é dedicada à vida e obra desta cantora paulista, que morreu em Novembro, aos 73 anos.

A série é curta. Apenas cinco episódios com 30 minutos cada. Embora estes sejam suficientes para nos embrenhar nas provações de Cassandra, que trabalha como estafeta para ganhar a vida e vive para os poucos shows que faz num bar como cantora de versões, ao lado do amigo Décio (interpretado pelo ex-Titãs Paulo Miklos), assim como nas suas contradições. A procura pela estabilidade, por alguma normalidade, para tentar construir algo em cima disso, tornou Cassandra numa pessoa dura e quase insensível aos outros. Faz o que quer, como quer. Como se já tivesse feito concessões bastantes, como se não estivesse disponível para mais hesitações, mais passos atrás, como se o mundo apenas pudesse avançar, progredir, melhorar. Isto vale para a dona do bar, Roberta (Clodd Dias), que lhe pede que não cante Vanusa, porque não é o que o público quer, e Cassandra insiste; vale para a relação com o namorado, o sereno Ivaldo (Thomas Aquino, que protagonizou Bacurau); vale para o filho, Gersinho (o estreante Gustavo Coelho), apesar do fascínio que este rapidamente desenvolve pelo “pai”. E é este o aspecto central da série realizada por Luís Pinheiro e Dainara Toffoli. Gersinho não é bem-vindo. É fruto de um caso passageiro com Leide (Karine Teles, também da primeira linha de Bacurau), mulher cis que levou uma década para revelar o segredo – e só o faz agora por extrema necessidade.

A história de Leide corre em paralelo com a de Cassandra. Apesar de não ter honras de protagonista e de, a determinada altura, a sua personagem resvalar para a transfobia, esta mulher é uma sobrevivente. Vive com o filho num carro avariado, fazendo turnos de sono com o miúdo para que um deles fique sempre de sentinela. O perigo espreita. A fome ataca. E ela faz tudo o que está ao seu alcance por Gersinho, dos trabalhos mais precários a aproveitar cada nesga de oportunidade que lhe dão, ora legalmente, ora ilegalmente. Não é imediata a empatia por Leide, nem ela se coloca nessa posição. Tem aquela esperteza de rua que nos faz olhar de lado, em repulsa. Até percebermos que esta é a única forma que ela tem de se manter à tona, de proteger o filho do abismo. Uma mulher-fortaleza, tal como Cassandra, que resiste à presença de Leide e de Gersinho, que chega a pedir aos amigos que não os ajudem, para que possam desaparecer da sua vida, para que ela continue em busca de um ideal de vida que não existe, que é uma aspiração solitária e linear. Mal estas duas mulheres sabem que têm muito mais em comum do que um filho encantador.

Amazon Prime Video. Sex (Estreia).

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