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Afrodite, Ártemis, Hipólito e Fedra vivem. Neste museu, são apenas estátuas, mas nem por isso deixam de respirar, andar e falar. Andam para cá, andam para lá e falam, falam pelos cotovelos. Falam de si próprios, não fossem eles importantes deuses e figuras da mitologia grega. E tal como muitos de nós, também gostam de falar dos problemas, aliás das tragédias alheias. Para mal de Fedra, que é casada com o rei Teseu, apaixona-se pelo seu enteado, Hipólito, o que dá muito que falar, claro está. Em Fedra (Não é de Pedra), Martim Pedroso reconta a tragédia grega, dando-lhe uma roupagem, desta vez, mais feminista. A peça estreia no São Luiz a 26 de Março.
Rita Lello tinha a ideia. Martim Pedroso já sentia a vontade de pôr em cena os clássicos gregos que envolvessem não heróis, mas sim heroínas trágicas. À semelhança de outras figuras da mitologia grega, a história de Fedra já foi contada muitas vezes e de maneiras diferentes. A partir de um conjunto de versões, nomeadamente dos autores Eurípides, Séneca, Racine e Sarah Kane, o encenador quis fazer uma espécie de “manta de retalhos” de todas estas versões. Contudo, durante o processo, decidiu outra coisa: “Acabei por perceber que não queria fazer isso. Estive a ler e a reler todas essas versões e acabei por querer escrever a minha própria versão, indo buscar ali e acoli. É [um texto] muito ancorado na versão de Eurípides e de Racine, com algumas extrapolações mais contemporâneas, não só na linguagem como visuais, que podem estar mais relacionadas com a versão da Sarah Kane”, começa por explicar Martim Pedroso, após um ensaio no teatro A Barraca.
Nos seus lugares, posam as estátuas. O fundo é coberto por um pano preto que, em palco, será substituído por um ciclorama que, ao longo da peça, passará vídeos. Afrodite salta do seu pedestal e passa a introduzir o que se vai ver representado. É acerca de Fedra que, vestida de branco e sentada em exposição junto das demais, se centra esta peça. Dentro de momentos, também ela se levantará e dará a conhecer a sua história. Filha de Minos e Pasífae, casou-se com Teseu, rei de Atenas, que se julga estar desaparecido em batalha. Durante este período, sozinha no trono, Fedra apaixona-se intensamente por Hipólito, o seu enteado.
Mal vista por desejar um homem mais novo, Fedra vê-se envolta numa tragédia. Esta toca em várias questões relativas à mulher, que Martim Pedroso sentiu necessidade de pôr em evidência. “Aqui, Fedra acaba por ser uma heroína que nos traz muitos assuntos actuais – a questão do idadismo, da sexualidade de uma mulher mais velha, de querer desejar um homem mais novo”, o que realça o facto de as mulheres serem “seres bons, maus, assim-assim”. “Quer dizer, as mulheres não têm que ser só santas e só putas, podem ser uma conjuntura de coisas.” Fedra chega a protagonizar um momento em que ela discute a posição à qual o género feminino se vê condenado desde a nascença.
Em palco, desenterra-se uma narrativa de há séculos e que, a par com o registo e a linguagem utilizados, chega aos dias de hoje. A tragédia acaba por tornar-se uma comédia, em que personagens como Fedra se dissociam de si mesmas e confrontam o ridículo que lhes está associado, num registo pós-dramático que pontua toda a peça, e em que outras, como é o caso de Panóplia, tornam a sua interpretação excessivamente e comicamente dramática. “Estou a tratar um tema sério e tenho momentos em que, de facto, toco em registos diferentes, porque acho que vivemos uma contemporaneidade mais cínica, mais irónica e, mesmo no teatro, já não há espaço para as pessoas verem grandes dramas, há muito mais distanciamento dessas coisas."
Ao longo de quatros actos e um epílogo, os vídeos que passarão no que é agora apenas um fundo preto contribuem para o desenrolar da acção, mas, por outro lado, possuem um carácter extrapolativo que preenche as lacunas que a história pode deixar à nossa imaginação. Na floresta, Hipólito e Fedra envolvem-se. Na floresta, Hipólito procura pelo pai desaparecido. “O vídeo pontua o espectáculo quase até ao final e é o lugar da extrapolação, do onírico e do subconsciente das personagens, portanto é o lugar do sonho e da memória também, das memórias fabricadas e das memórias reais”, continua o encenador.
No fim, o que o espectáculo pretende é ser um “manifesto feminista”, o qual dará início a uma trilogia de peças teatrais encenadas por Martim Pedroso que figuram, igualmente, heroínas trágicas, nomeadamente Medeia e Antígona. “O que liga para mim essas três heroínas é a incompreensão, há um lado de incompreensão não só das personagens que cercam estas figuras, como do próprio público”, já que “nós rejeitamos, mas ao mesmo tempo amamos estas personagens e rejeitamos por levantarem tantas questões que são incómodas.”
A juntar a manifesto feminista, Fedra (Não é de Pedra) quer ser um espaço que protagoniza a diversidade e reflecte a sociedade em que vivemos e daí a importância, para o encenador, de abrir audições para a peça. “Faço isso porque é importante as pessoas sentirem que podem ir. Não importa se tenho paralisia, se sou preto, se sou azul, se sou amarelo, que cultura tenha, se sou transexual. Isso é extremamente importante, faz parte da práctica da democracia, e eu quero sempre fazer parte dessa práctica em tudo o que faço, seja nos meus espectáculos, seja nas audições, seja no meu dia-a-dia.”
São Luiz Teatro Municipal. 26-30 Mar. Ter-Sáb 20.00. 12€-15€
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