[title]
São ouvintes e confidentes, amigos e família. Não têm dias maus, mesmo quando os têm. O serviço está primeiro, os clientes acima. Há histórias que só eles sabem, algumas que se espalhariam em menos de nada se fossem contadas. São leais, à casa e a quem chega, mesmo que pela primeira vez. E este talvez seja o maior segredo do Gambrinus, um clássico, nas Portas de Santo Antão, que tem superado a difícil prova do tempo: o seu balcão de 12 lugares – ou melhor, aqueles que, de sorriso subtil e piada fácil, fazem o balcão e mantêm o legado vivo.
“Se esta secção bloquear, está tudo bloqueado. Quando esta não funcionar como deve ser, está tudo perro.” As palavras de Manuel Martins poderiam ser lidas no sentido figurado que ainda assim fariam sentido, mas é literal quando diz que tudo pára no restaurante se alguma coisa acontecer no balcão. É daqui que saem as bebidas para as salas, bem como as entradas. “Ostras, amêijoas, gambas. O presunto, nós é que o cortamos aqui. Cortamos as frutas para a sala”, explica o funcionário mais antigo do Gambrinus. “Cheguei cá no dia 9 de Setembro de 1980. Já lá vão 42 aninhos. Sou o mais antigo de colegas, mas de patrões também”, diz o minhoto, orgulhoso.
Foi quando saiu da tropa e andava à procura de emprego que chegou ao Gambrinus. “Comecei pela cozinha, onde estive uns seis anos, acho, e depois vim para o balcão.” Uma vez ao balcão basta para que Manuel se torne familiar e pouco importa se quem ali se senta quer apenas provar o afamado croquete (2,40€) ou atirar-se a uma lagosta (70€/500 g). Manuel não está ali para julgar. Bom, a não ser que se peça apenas um croquete. “Um só não chega.” Carlos Serafim, outra cara conhecida do restaurante (está há quatro anos no balcão, depois de 24 nas mesas), interrompe: “O Manel tem uma particularidade, se os clientes pedem dois croquetes, ele mete quatro”. “Eu digo sempre, o que sobrar é para mim. Só pagam os que comerem, mas um nunca chega”, insiste Manuel. “Há colegas meus que pedem um croquete, depois mais um croquete, e quero mais um, e mais um. Assim eu resolvo logo o problema. Se me pedem uma dúzia, eu peço 24. E sai sempre bem”, conta, bem-disposto.
Em dias bons, “quando há Coliseu”, chegam a vender-se 300 croquetes. “É uma loucura” que nem sempre é apreciada por quem serve, não pelo fluxo de trabalho mas pela falta de tempo para dedicar a quem se senta à sua frente. “Há clientes que às vezes até querem uma palavrinha, mas não conseguimos”, lamenta Carlos. “Gostam de atenção e muitos ficam ciumentos se fico aqui muito tempo a falar e eles estão lá ao fundo”, observa Manuel. “Pensei que não vinha aqui dar o bom dia, está zangado comigo?”, reproduz, revelando que uma das regras do serviço de quem trabalha ao balcão do Gambrinus é cumprimentar os clientes, “um a um”, sempre que entra ao serviço. E o mesmo acontece quando acaba o turno: “Dizemos muito obrigada, foi um prazer e tudo mais.”
Se é verdade que Manuel nunca esteve a servir nas salas – são duas –, Carlos tem termo de comparação. “Aqui há mais contacto com o cliente, estamos mais perto”, afirma. “É quase uma família, entre cliente e empregado”, acrescenta Manuel. E isso significa não só conhecer as manias dos clientes, decidindo-lhes muitas vezes o menu, como também cuidar-lhes dos descuidos, guardar-lhes os segredos, tolerar-lhes a frustração. Já tiveram de levar pessoas ao hotel, apararam golpes, amenizaram discussões, sempre com a maior discrição. “Eu costumo dizer que somos cegos, surdos e mudos. Às vezes, há clientes que perguntam: quem é que esteve cá, quem é que vem cá?”, refere Carlos. “Não me lembro de nada”, responde, depressa, Manuel. “Outros dizem: ‘Esteve cá o senhor ministro ou o senhor presidente, não foi?’ Digo eu: esteve? Não me apercebi”, continua Carlos.
Talvez por isso se contenham nas histórias, ainda que algumas sejam já sobejamente conhecidas. O realizador Fernando Lopes (1935-2012) nunca escondeu a sua devoção ao Gambrinus. Sentava-se sempre no primeiro lugar ao balcão, do lado da porta. “Ao meio-dia já estava aqui, todos os dias, menos ao sábado e ao domingo. Sempre. Estava sempre ali batido”, recorda Manuel. Numa entrevista ao Diário de Notícias, em 2004, o cineasta explicava como o restaurante fazia parte da sua vida desde 1960. “Há um lado de confessionário no balcão. Podemos dizer coisas a empregados que conhecemos há 20, 30 anos”, argumentava. Clientes assíduos assim já não são tão frequentes, confessa Manuel, mas ainda existem alguns. “Há muitos que vão para a mesa, mas passam aqui para nos cumprimentar. E muitos dizem que aqui a comida sabe sempre melhor. Parece que é diferente”, continua Manuel. O segredo? “É segredo”, responde Carlos em tom de brincadeira.
“A cozinha marca muito, não é qualquer lado que tem pratos como no Gambrinus, desde o empadão de perdiz ao cabrito assado no forno”, justifica Manuel, acrescentando à equação “o servir bem e os bons produtos”. “Acho que o atendimento também”, completa de forma tímida. “Tenho clientes que dizem: sempre que cá venho gosto de ser atendido por si. São essas coisas que fazem a diferença.”
Resta, agora, quebrar o mito de que “o Gambrinus é caro”. “Quem vem aqui tanto pode comer o croquete e o prego (10€) como uma refeição completa com champanhe”, apressa-se a responder Manuel. “Não há que ter medo ou vergonha de entrar”, assegura Carlos. “A gente, às vezes, vai ali à porta e pergunta a quem está a espreitar: deseja conhecer? Quer ver? E mostramos-lhes. Já se quebra o gelo”, conta Manuel. “Temos pessoas que chegam porque alguém lhes falou do croquete. Entram a medo a perguntar se podem só comer o croquete. Claro, e amanhã se for preciso voltam.” Como todos os outros.
Rua das Portas de Santo Antão, 23 (Restauradores). 21 342 1466. Seg-Dom 12.00-00.00
+ No Cais do Sodré, o Corrupio é uma ode ao balcão
+ No Delibar do JNcQUOI, um dos balcões mais bonitos de Lisboa, há sempre novidades