Notícias

'No Meu Bairro', agora em palco. “A melhor política pública é a empatia”

A Sociedade das Primas estreia a adaptação para teatro do livro ‘No Meu Bairro’ a 1 de Junho, Dia da Criança. Conversámos com a escritora Lúcia Vicente, a encenadora Beatriz Teodósio e o elenco.

Raquel Dias da Silva
Jornalista, Time Out Lisboa
No Meu Bairro
© Sara ChoupinaEnsaio de ‘No Meu Bairro’, no Espaço LX Jovem
Publicidade

Foi em Setembro do ano passado que a escritora Lúcia Vicente e o ilustrador Tiago M. fizeram chegar às livrarias um álbum ilustrado para todes. Escrito assim mesmo – todes –, com recurso ao Sistema Elu, uma proposta para a inclusão de um género gramatical neutro no português, No Meu Bairro fala-nos das diferenças que nos unem através das vidas e inquietações de 12 crianças; e, apesar de propôr um ponto de partida para debates sobre diversidade e inclusão, chegou a ser alvo de protestos machistas e homofóbicos. Agora, já na 3.ª edição, salta das páginas para os palcos, num espectáculo produzido pela Sociedade das Primas. Com um elenco tão diverso quanto as temáticas abordadas, este espectáculo de teatro para a infância estreia em português e em Língua Gestual Portuguesa a 1 de Junho, Dia da Criança, na Casa dos Direitos Sociais.

No Meu Bairro
© Sara Choupina/ Time Out LisboaA escritora Lúcia Vicente, a encenadora Beatriz Teodósio e o elenco: Sofia Soares (performer de Língua Gestual Portuguesa), Danilo da Matta, Mariana Vasconcelos, Patrícia Fonseca e, em baixo, Fred Botta e Inês Cóias

“A ideia surgiu em conversa com a Beatriz [Teodósio], o livro ainda não tinha sequer saído, mas ela disse-me logo que adoraria levar a história a palco e ficou acertado que o faríamos”, revela-nos Lúcia Vicente, que assina a adaptação. “Não tivemos apoio [da Direcção-Geral das Artes] e claro que é difícil montar um espectáculo sem financiamento, mas tínhamos tudo o resto e a Penguin Random House disponibilizou-se imediatamente a prescindir dos direitos de autor, porque também considera importante levar estes temas a mais pessoas, a mais crianças.” Beatriz Teodósio, co-fundadora da Sociedade das Primas, juntamente com Fred Botta e Francisco Sampaio, não podia concordar mais: “Isto está tudo a sair-nos um bocadinho da pele e só é possível acontecer por causa da equipa que temos. Mas esperamos ter casa cheia e recebermos propostas de compra do espectáculo.”

No Meu Bairro
© Sara Choupina/ Time Out Lisboa

Todas as pessoas envolvidas acreditam, sem reservas, na qualidade e na pertinência da peça. Não se trata de um decalque do livro, asseguram. O guião debruça-se sobre muitas das mesmas temáticas – desde racismo, xenofobia e capacitismo até igualdade, equidade, identidade e expressão de género –, mas Lúcia Vicente fez questão de criar um novo objecto artístico, que conta também com música original de Beatriz Almeida. A ideia também foi aproveitar para corrigir coisas que acha que fez menos bem. “Por exemplo, o super-poder da Esther é ser uma força agregadora, uma pessoa que é capaz de movimentar e juntar outras, e não creio que tenha ficado claro no livro. Portanto, para mim, foi importante recontar a sua história e, claro, é uma mais valia ter pessoas em palco que, na verdade, estão a interpretar personagens a partir do seu próprio lugar de fala. O elenco não foi escolhido por mim, mas o texto também se inspira nas suas vivências reais.”

No Meu Bairro
© Sara Choupina/ Time Out LisboaNo palco, Inês Cóis, Sofia Soares e Fred Botta

Quem narra a história é Alex. A personagem, que fala em voz off e em Língua Gestual Portuguesa, é interpretada por Sofia Soares (ou Valentina Carvalho, depende do dia), que nos convida a viajar no tempo, até ao bairro onde cresceu e ao dia em que, ainda criança, escreveu com outras crianças um Manifesto das Diferenças. “Faço parte da comunidade surda desde 2012. Primeiro tirei um curso para dar aulas, depois outro para ser intérprete, mas não tenho nenhuma história romântica para partilhar. Não me apaixonei por um surdo, os meus pais não são surdos. Foi um acaso, que me levou a tirar duas licenciaturas na área [na Escola Superior de Educação de Coimbra]”, conta Sofia, que deu um workshop à restante equipa. “Quero acreditar que ficaram com o bichinho e que até desejam ir além das pequenas frases que lhes ensinei, e que as pessoas que decidam ver-nos em palco despertem também para esta questão. Sou da opinião que toda a gente devia aprender pelo menos o básico.”

Todes juntes somos mais fortes

Além de tornar visível a comunidade surda, que inclui todas as pessoas que falam Língua Gestual Portuguesa, sejam surdas ou ouvintes, No Meu Bairro foca muitas outras problemáticas ao trazer para o centro da narrativa outras três personagens com experiências de vida distintas e uma quarta, o Livro Aberto, que as guia e evoca o manual incluído no final da obra original. “O livro, que é um objecto animado, é interpretado por mim e pela Beatriz, umas vezes faz ela, outras vezes eu, e o mais curioso é que, no início, tem muito a dizer e depois acaba por deixar que sejam as crianças a falar das suas próprias inquietações. E é importante que a nossa personagem seja um objecto porque senão seríamos apenas mulheres brancas privilegiadas no lugar do saber. Por outro lado, é também uma forma de interagir com o público, porque quando alguém não percebe alguma coisa só tem de dizer ‘ajuda-me, livro’”, remata Patrícia Fonseca.

A ambição, esclarece-nos a encenadora Beatriz Teodósio, foi tentar ensinar vários conceitos complexos à boleia da história e de uma forma mais divertida do que moralista. Por exemplo, Danilo da Matta, que nasceu em Bissau, é uma pessoa racializada e interpreta Rodrigo, uma personagem que, além de ter uma relação difícil com o pai, também sofre de racismo e colorismo. Ainda assim, é uma criança muito extrovertida. “Gosto de pensar no Rodrigo como uma pessoa muito corajosa, porque está a levar a cabo uma espécie de revolução em casa, quando assume que gosta de usar vestidos”, revela o actor, que admite ter sido um miúdo muito mais tímido e inseguro. Já Fred Botta, uma pessoa não-binária, não se poderia identificar mais com a sua personagem, Maria Miguel, uma criança não-binária. É o mote perfeito para falar sobre identidade e expressão de género.

No Meu Bairro
© Sara Choupina/ Time Out Lisboa

“Acho que, se a criança que fui olhasse para mim agora, iria ficar mais do que contente. Ia dizer ‘check, é por aí’, e é incrível, porque também sempre fui muito questionada, és menino ou és menina, tens o cabelo grande mas és um menino, ou vice-versa, rapavam-me o cabelo para me encaixar. É libertador dar voz às crianças que se possam ver reflectidas nestas questões. Na minha altura, só havia histórias de príncipes e princesas”, lamenta Fred, antes de dar a palavra à brasileira Mariana Vasconcelos, que interpreta Dandara. “É uma criança imigrante, brasileira, que está aprendendo sobre feminismo. Tem um quê de esperançosa e é muito sonhadora e reivindicativa. Eu não fui uma criança imigrante, mas sou uma adulta imigrante e fico angustiada de ver o que as crianças imigrantes passam. A indignação de Dandara [com a colonização e a xenofobia] é a minha.”

Tornar o mundo melhor seria o sonho, mas ninguém sairia triste se conseguisse, pelo menos, pôr a plateia a conversar sobre o que é possível mudar no seu bairro. Acessibilidade, por exemplo. Inês Cóias, que interpreta Esther, move-se de cadeira de rodas e confronta-se quase todos os dias com passadeiras não rebaixadas, falta de rampas ou elevadores e pessoas inconvenientes que ora querem saber o que lhe aconteceu, ora a tratam como um ser espectacularmente espectacular só porque está a comprar maçãs no supermercado. “Isto é real, acontece-me todas as semanas, e dá-me muito prazer estar agora em palco a representar uma criança com deficiência, cheia de atitude e super desviante do que as pessoas acham que uma pessoa com deficiência deve ser”, partilha Inês, que só se tornou uma pessoa com deficiência no final da adolescência, início da idade adulta.

No Meu Bairro
© Sara Choupina/ Time Out Lisboa

“Às vezes é muito duro. Não porque não estamos preparadas, mas porque o mundo não está”, acrescenta Inês. “Angustia-me imaginar o que é ser uma criança com deficiência e não poder ir ao parque brincar. A partir do momento em que lugares públicos não são acessíveis, deixam de ser lugares públicos. Se são só para alguns, não são públicos. Acho muito importante trazermos estas questões para palco e partilharmos o nosso Manifesto das Diferenças, que também é um hino, com as crianças que nos vão estar a ver. E é incrível representar uma pessoa com deficiência num lugar de poder. Basta pensarmos na disposição dos teatros: as pessoas com deficiência têm de ficar a um canto”, denuncia. “Era mesmo fixe as pessoas saírem daqui a respeitar a identidade de cada um. A melhor política pública, a que engloba toda a gente, é a empatia.”

Depois da estreia, a 1 de Junho, No Meu Bairro tem apresentações marcadas para 22 de Junho, na Biblioteca de Marvila; a 16 de Novembro, no Seixal; e a 22 de Novembro, na Biblioteca de Avis, em Portalegre. Os bilhetes custam entre 7€ (preço único) e 5€ (para pessoas com deficiência, que têm direito a um acompanhante grátis). As reservas devem ser feitas por e-mail (nomeubairroteatro@gmail.com) ou telefone (91 103 6019/ 96 712 3029).

Estreia: Casa dos Direitos Sociais, Rua Ferreira de Castro. 1 Jun, Sáb 11.30. 5€-7€

Siga o canal da Time Out Lisboa no Whatsapp

+ Este espectáculo evoca a força invisível que alimenta as florestas

Últimas notícias

    Publicidade