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‘No Meu Bairro’: um livro infanto-juvenil para “todes”

O novo livro infanto-juvenil de Lúcia Vicente foi escrito em linguagem neutra. Conversámos com a autora sobre a importância de ser inclusivo.

Raquel Dias da Silva
Jornalista, Time Out Lisboa
No Meu Bairro
Ilustrações de Tiago M.No Meu Bairro, de Lúcia Vicente e Tiago M.
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Não é a primeira vez que Lúcia Vicente escreve livros que nos convidam a questionar o estado do mundo. Com formação em História e uma veia activista, a autora tem feito questão de se dedicar ao que chama de “educação para os feminismos”. Agora, depois de ter posto a descoberto as Raízes Negras do mundo, oferece-nos o primeiro livro infanto-juvenil em Portugal escrito com recurso ao sistema Elu, uma proposta para a inclusão de um género gramatical neutro no português. Com ilustrações de Tiago M., No Meu Bairro – que chega às livrarias a 11 de Setembro, pela Nuvem de Letras – fala-nos das diferenças que nos unem através de uma viagem pelas vidas e interrogações de 12 crianças. Desde Maria Miguel, uma criança não-binária, até Amir, um rapaz com vitiligo, são diversas as vozes que nos chegam em forma de poemas.

“Na minha cabeça não faz qualquer sentido haver um livro que fala sobre a inclusão e não incluirmos na linguagem todas as pessoas”, diz-nos Lúcia, que não podia estar mais convencida da importância de adoptar e promover uma língua que não exclui. “Eu sou algarvia e toda a minha vida cresci a ouvir dizer ‘todes’, portanto a linguagem [neutra] a mim não me causa estranheza. Claro que a introdução dos plurais e dos artigos é difícil e eu própria ainda não sou fluente a falar. A escrever sim. A falar ainda é estranho e por isso compreendo que o seja para qualquer outro adulto, mas se introduzirmos estas alterações no nosso idioma, que o tornará mais igualitário e representativo, quando as crianças começarem a falar, será assim e não causará estranheza.”

A autora já não se lembra exactamente de quando descobriu o sistema Elu, mas assegura que, ao cruzar-se com diferentes propostas para uma gramática neutra que elimine o binarismo de género, não teve dúvidas da sua pertinência. “O nosso idioma tem evoluído muitíssimo. Se formos ver a poesia das cantigas de amigo, já ninguém diz ‘mui, mui formosa’, nem ninguém escreve farmácia com ph como se fazia no século XIX. E, atenção, é importante reforçar que estas alterações [linguísticas] não dizem respeito a objectos: ninguém vai querer mudar [o género gramatical] de uma porta. Tem única e exclusivamente a ver com pronomes pessoais e com os adjectivos que qualificam pessoas, porque quando não incluímos todas as pessoas estamos a negar-lhes o direito a existirem.” Razão porque os seus próximos livros, a sair entre 2024 e 2025, também vão ser escritos em linguagem neutra.

Sou assim e está tudo ok

Tal como a linguagem neutra só pode ser normalizada se for visível e, pouco a pouco, começar a entrar no dia-a-dia, há muitas outras questões que só é possível tornar familiares com uma maior representação, como a necessidade de combater a masculinidade tóxica e o bullying ou de promover o diálogo intercultural. “Parti das várias temáticas abordadas na disciplina de Cidadania”, esclarece Lúcia, que admite querer inspirar também “todas as pessoas que educam”. “É um ponto de partida para debates que requerem mais sensibilidade e para o qual quem ensina nem sempre está preparado”, acrescenta a autora, que contou novamente com a “leitura de sensibilidade” da socióloga Alexandra Santos, cuja investigação se centra em representações de género, mas também com a de Bruno Gonçalves, activista da comunidade cigana.

Uma das 12 crianças que protagonizam No Meu Bairro chama-se Beatriz e é uma “cigana feliz”. Desafiada por uma professora a falar com a turma sobre as tradições ciganas, a miúda de olhos verdes não só conta “como es Rom, es Sinti e es Calons sofreram mais de quinhentos anos de perseguições”, como fala do seu idioma, o Romani, e ensina canções que canta a plenos pulmões. “A história de Beatriz é também uma tentativa de introduzir a palavra Rom [ou Roma] para definir a comunidade que conhecemos como cigana. Se no mundo já toda a gente usa [o termo correcto], num livro sobre diversidade, em Portugal, acho que era importante fazer o mesmo”, afirma, antes de desvendar que este poema em particular foi inspirado pela professora Helena, que na primária, em 1988, também pedia à sua turma para trocar cultura. “Era uma professora que nos fazia querer ter mundo.”

Já sobre as questões de identidade e expressão de género, que não podiam faltar num livro que se apresenta neutro na linguagem, a preocupação de Lúcia foi que até uma criança de seis anos fosse capaz de perceber a sua mensagem. “Tentei desconstruir a ideia de vivermos numa sociedade binária, e acho que uma criança que leia a história de Maria Miguel consegue compreender que está tudo ok, que ela pode ser a criança que quiser, gostar do que quiser, brincar como quiser, desde que seja acompanhada e compreendida. Aí também é muito importante que os adultos percebam que, na grande maioria das vezes, as crianças sentirem-se diferentes daquilo que lhes dizem ser é uma coisa que acontece numa idade tão precoce quanto os quatro, cinco anos.”

Atenção, é normal ter dúvidas. E as dúvidas não acabam quando crescemos. Mas este livro, tal como a professora primária de Lúcia, convida-nos a “ter mundo”, como quem diz a acolher a diversidade que nos rodeia. E, no final, se persistirem perguntas e receios, é só ler o “Manual de Apoio Para Educar Pessoas Conscientes, Empáticas e Respeitadoras das Individualidades e das Diversidades”, que acrescenta ao debate em torno de temáticas como o género, o bullying, as diferentes configurações de família, a imigração, o racismo, a deficiência, a liberdade religiosa e o que é ter uma doença auto-imune. “Estou, mais uma vez, a usar o privilégio que tenho para poder contribuir para alguma mudança positiva na nossa sociedade. Para algumas pessoas. Com certeza que há quem ache que este livro é um disparate, mas paciência. Se mudar a vida de um casal lésbico ou de uma criança, o meu trabalho já está feito.”

No Meu Bairro, de Lúcia Vicente (texto) e Tiago M. (ilustração). Nuvem de Letras. 48 pp. 13,95€

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