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“Parece um daqueles testes de observação. Descubra o que é que está de errado nesta fotografia”, diz Nuno Artur Silva, contemplando a imagem oficial da tomada de posse do XXII Governo Constitucional, em Outubro de 2019. O executivo liderado por António Costa encara a câmara, sorridente, frente ao Palácio Nacional da Ajuda. Todos menos um: Nuno Artur Silva, então secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Media. “Para quem acredita em sinais premonitórios, eles estavam lá”, acrescenta. “Quem é que ali está a olhar para o lado no preciso momento da fotografia? Adivinharam.”
Os episódios ligados à experiência governativa são uma grande parte de Onde é que eu ia?, o novo solo que o fundador das Produções Fictícias, de onde saíram programas como Herman Enciclopédia ou Contra-Informação leva ao teatro São Luiz. Desengane-se quem acha que vai ver o circo a arder – apesar das labaredas que chamuscam os ministros ou do tacho que António Jorge Gonçalves vai desenhando, ao vivo, no palco. Há capítulos (14, no total) sobre “o que é que é isso de ser argumentista”, “a ida para a RTP”, em 2015, “este mundo em que estamos, das redes sociais, das breaking news permanentes, dos alertas" ou até “conclusões sobre o que é o poder”.
“Sou muito gozado por andar sempre com o meu bloquinho de notas e lápis”, diz à Time Out depois de mostrar uma única cena do espectáculo que se estreia esta quinta-feira na Sala Mário Viegas, a sala secundária do teatro lisboeta. Nuno Artur Silva, 60 anos, não sabe quem se sentará nas cadeiras da plateia, mas sejam companheiros do Governo ou curiosos, certo é que, semanas antes da estreia, todas as sessões já estavam esgotadas. Entretanto, foram adicionadas seis datas extra (18, 25, 26, 27, 28 e 29 de Janeiro).
Quem passa por cargos políticos normalmente escreve livros. O Nuno vem para o palco.
Eu digo isso, por acaso, é uma das frases do espectáculo. Normalmente quando se vai para a política depois escreve-se um livro de memórias. No meu caso, mal dá para um stand-up. Prometo que não escreverei memórias políticas, primeiro, porque não tive tempo, depois, porque acho que o formato stand-up se adapta mais.
Nas funções que desempenhou, tanto como secretário de Estado do Cinema e do Audiovisual como como administrador com o pelouro dos conteúdos na RTP, tirava já notas para este espectáculo?
Não. O que acontece é que tiro notas naturalmente. Sou um observador. É uma coisa que faço desde miúdo, desde adolescente. ‘Ideia para poema’ ou ‘esta frase é gira’, ou ‘ideia para um sketch humorístico’. Vou enchendo os blocos de notas com ideias para fazer coisas. Isso acompanhou-me sempre. Este espectáculo foi interrompido em 2015. Chegámos a fazê-lo, mas não fizemos a digressão porque fui para a RTP. Passei a ter mais material e fiquei sempre com a ideia de fazer o espectáculo. Quando me ia preparar para fazê-lo, quando saí da RTP, fui convidado para o Governo. À terceira, a ver se é desta. Depois, está feito. Não sou um comediante, não sou um stand-up comedian, o que sou é um tipo que gosta muito de trabalhar com as outras pessoas. Do trabalho criativo colectivo.
Mas isto não é um solo?
É um solo acompanhado. Como da outra vez era um solo acompanhado (na altura subia a palco com a banda Dead Combo). Estou com o António Jorge [Gonçalves]. Gosto desta expressão, é uma contradição que espelha bem a vida. A vida também é um solo acompanhado. Gosto deste conceito. E, de facto, toda a minha vida fui fazendo coisas colectivas criativas. As Produções Fictícias é um trabalho colectivo com muitos autores. Fomos fazendo uma data de coisas. Quando faço uma peça de teatro é um colectivo. Quando faço uma banda desenhada é com um desenhador. Gosto dessa ideia de trabalhar criativamente em equipa.
Considera-se um criativo?
À falta de melhor. Quando é para ir para os hotéis hesito sempre na profissão que escrevo lá. Posso pôr autor, é fácil. Mas, às vezes, gosto de pôr ‘artista de variedades’. Dá para muita coisa.
O que diria o seu pai, que era presidente da junta?
[Risos.] Por acaso nem sei como é que ele classificaria o que faço. Um artista, se calhar.
O que é que um humorista e um político têm em comum?
O lado performativo. Hoje em dia muito da actividade política é a sua performance. Ou seja, já não é a sua capacidade de executar só. Não é só a sua capacidade de escrever um grande discurso, é também a capacidade de dizer e de ser inspirador. Não é só agora. É agora cada vez mais, mas sempre foi assim. Os grandes políticos sempre foram uns performers. E os humoristas também são performers. Trabalham com linguagem. Em ambos os casos a linguagem é fundamental.
Que papel é que a televisão e agora as redes socias têm em empolar essa performatividade?
A televisão foi durante muitos anos o instrumento maior da propagação. Com a internet, o modelo mudou. Em vez de termos os centros irradiadores de mensagens já temos muitos centros e as coisas já funcionam em redes. Hoje o peso das redes sociais é brutal. Está a mudar a forma de comunicar, que é muito mais por rede do que por uma única difusão num dado momento. Não está toda a gente a ver aquilo à mesma hora. Hoje as coisas são muito espalhadas por rede. Isso é a grande mudança do modelo social hoje.
Não está muito presente nas redes sociais. Isso é um indicador de que não fará carreira política?
A carreira política está fora de questão. Aquilo que fiz foi uma coisa em que acredito, que é: acho que a democracia é feita de políticos profissionais e deve ser feita também de pessoas que vêm da sociedade civil pontualmente, e que podem trazer alguma visão para o sector em que estão e contribuir temporariamente. A política é feita de políticos profissionais e de políticos temporários, que são cidadãos que levam uma perspectiva sobre as coisas, eventualmente transmitem a necessidade que para a sua área era preciso tratar e depois voltam para a sua vida. É como um serviço cívico. É assim que eu encaro. Está fora de questão ser político profissional. Não é isso o que sei fazer melhor.
Esteve nesse serviço tempo suficiente?
Não. A minha ideia era ter feito o mandato, ter feito os quatro anos. Fiz só dois e meio. Houve muito pouco tempo e sobretudo foram dois anos e meio muitíssimo condicionados. Aquilo que éramos para fazer não fizemos porque estivemos sempre em modo reactivo, em modo de emergência. Levávamos uma ideia para desenvolver num contexto económico positivo, que era o contexto de Portugal em 2019, de crescimento económico. Havia um optimismo. Levámos um plano para isso. E, de repente, aconteceu a pandemia. Nós e o país inteiro e o mundo inteiro tivemos de rever os nossos planos. A peça também fala disso, do que acontece quando os nossos planos são profundamente alterados. Fiz o que foi possível naquele contexto. Está feito. Considero a minha experiência governativa terminada.
No solo, a dada altura diz: “Os políticos competentes para o humor são os piores”. Considera-se um bom boneco para efeitos cómicos?
São os piores para fazer comédia. Um bom político, que seja aborrecido, que não seja uma personalidade muito mediática, é uma chatice para fazer um boneco. Eu, não. Por acaso acho que tenho... Primeiro, não sou um político. Depois, acho que poderia dar um bom boneco no sentido de ser desajeitado como político, vir de outras áreas... Mas, quer dizer, ninguém gastaria dinheiro com um boneco meu porque eu estaria muito pouco tempo no Governo sempre.
O contexto político actual tem potencial cómico?
Tem sempre. É uma das constantes. O poder tem sempre potencial cómico. Varia o potencial cómico. Mas mais interessante do que nos concentrarmos só no poder dos políticos, hoje em dia acho que o grande desafio para os humoristas é fazerem humor não só sobre o poder político, mas sobre os outros poderes que também possam ter potencial cómico. Como o poder dos jornalistas, das forças económicas, dos vários poderes.
Acha que há uma centralização temática sobre aquilo que é feito pelos humoristas actualmente?
Eu percebo, é o mais. Quer dizer, as pessoas riem-se daquilo que reconhecem. Estando os politicos permanentemente na televisão são muito reconhecíveis. Hoje tornou-se tudo mais complexo. As coisas já não são assim tão simples. Portanto, as próprias formas de fazer humor devem acompanhar isso. Hoje em dia há coisas interessantes para fazer humor que não se esgotam na lógica só do Governo do momento e das piadas sobre o Governo. É mais interessante tentar perceber como é que o humor pode ir para outras áreas. Os comportamentos, outro tipo de temas.
É essa complexidade que tem levado à popularidade de formatos como o de programas de John Oliver, Trevor Noah ou, por cá, de Ricardo Araújo Pereira, que tentam descomplicar o mundo?
Sim. Os humoristas podem fazer coisas que os jornalistas por razões deontológicas não fazem. Mas também é verdade que, de facto, os humoristas, e penso sobretudo nesses modelos anglo-saxónicos, sobretudo americanos, se têm tornado os programas de referência para a leitura política do momento. Isso é verdade. Nós cá só temos um, em televisão, neste momento. Mas é normal nos vários países haver vários. Só nos Estados Unidos há vários que são olhares sobre a mesma coisa. Acho que isso enriquece a perspectiva.
Para a realidade portuguesa, um é adequado?
Não. Acho que é sempre melhor haver mais. A realidade portuguesa permite que haja vários comentadores políticos, inúmeros, aliás, por todo o lado, e também permite que haja vários humoristas. E há vários humoristas. Estamos a falar só do programa do Ricardo porque é o único que está numa generalista. Mas penso num jornal como o Inimigo Público ou no Jovem Conservador de Direita, que faz humor político. E há outros humoristas a fazer na rádio. Há espaço para muito humor. Acontece que nas televisões generalistas há só um. Mas há espaço para mais.
Neste espectáculo vai falar sobre incompatibilidades no Governo?
Não porque o espectáculo não é sobre o último Governo nem sobre os últimos tempos. O espectáculo é mais sobre o que aconteceu antes. E não é tanto sobre o Governo, é mais sobre experiências de diferentes formas de olhar o mundo através do ponto de vista em que se está.
O que é que traz ao palco por ter estado desse lado? De que forma é que isso moldou a sua visão sobre o espaço que hoje ocupa, até na forma como se apresenta em palco?
A forma como me apresento em palco não é diferente. Continuo com a mesma falta de jeito. Não sou um performer, mas uso os mesmo truques, que é o facto de ter sido professor e de ter dado já muitas conferências faz com que eu me cole um bocadinho a essa profissão e menos à do comediante. Portanto, não há grandes diferenças. O facto de ter estado no Governo traz-me uma maior compreensão das pessoas que estão do lado de lá também. Primeiro, eles não têm assim tanto poder quanto isso. Ser político não tem o mesmo poder arbitrário que em tempos já houve e ainda bem. O poder dos políticos hoje é bem mais relativo do que já foi. E depois é perceber que as coisas muitas vezes são muito menos estrategicamente pensadas. Os incidentes, os acidentes e os imprevistos às vezes são muito mais importantes do que as pessoas pensam. Pequenas coisas determinam muito mais do que coisas muito pensadas. As coisas não seguem tanto o guião, seguem mais o imprevisível, e isso é interessante. Quando o imprevisível acontece tudo muda de um dia para o outro. Uma das conclusões que tiro do Governo é a fragilidade do poder. Numa democracia como a nossa, democracia ocidental, o poder é um exercício muito mais frágil do que parece. Os políticos têm menos poder do que as pessoas podem julgar e tudo muda de um momento para o outro. Como se vê, a pandemia mudou tudo. Mas não é só a pandemia. Um incidente pode escalar. Incidentes naturais, estou a pensar em tragédias como Pedrógão, ou coisas caricatas, às vezes, como uma incompatibilidade que era óbvio que devia ter sido sinalizada e que por incompetência de alguém não foi. Estas pequenas coisas mudam a circunstância. Do ponto de vista de quem gosta muito de histórias é um fascínio. É como ver uma série e ver uma coisa que muda completamente o rumo da história. Gosto disso, desses incidentes. É-me impossível olhar para isto ser ser com o olhar do ficcionista.
Com esse passado e presente ligado ao guionismo, como é que se sente quando algo sai do guião?
Excitado. “Wow, isto vai ficar interessante.” O lado do perigo ao mesmo tempo é excitante, é muito mais interessante quando a vida nos surpreende. A beleza das coisas é que isto não estava no guião. A minha vida, e é isso que trata o espectáculo, é uma sucessão de coisas que não estava no guião.
São Luiz Teatro Municipal – sala Mário Viegas (Lisboa). 12-29 Jan. Qua-Dom 19.30, Dom 16.00. 15€
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