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O relógio aproximava-se das dez da noite quando os primeiros sons invadiram a sala. Não era a habitual música que compassa o desfile, mas sim o dia-a-dia de um atelier. Nuno Baltazar convidou-nos a entrar trazendo o ambiente para o Capitólio — o rasgar dos tecidos, o deslizar da tesoura, a máquina de costura, o vapor do ferro. As onomatopeias abriram caminho a “Diary”, uma colecção branca, do princípio ao fim.
“Pela primeira vez, quando soube qual era o tema da ModaLisboa [And now what?], houve logo um match. Era exactamente o que estava a sentir naquele momento. Não sei o que é que o futuro vai trazer. Então trabalhei nisso, mas de uma forma muito pessoal”, contextualiza o designer em conversa com a Time Out Lisboa.
Do ponto vista da construção, o público viu desfilar uma colecção exigente. “Não há contraste, a textura e a silhueta são fundamentais. A mistura de tecidos é um quebra-cabeças. A maioria são retalhos, coisas que num atelier em Paris estariam no lixo. Mas também são pedaços das histórias de outras pessoas, de outros vestidos, e da minha própria história. É um puzzle que não tem desenho, que fui criando e juntando directamente no busto e trabalhando de forma muito autoral e irrepetível.”
O bege texturado do busto viria a fazer parte de muitas das peças, como se de um atestado do moroso processo se tratasse. Num dos vestidos, Baltazar juntou 42 pedaços de tecidos diferentes. Foram dias, segundo conta, para chegar ao resultado final. No último domingo à noite, coube à amiga e musa Rita Fortes desfilá-lo. Telma Santos e Catarina Furtado completaram o trio. No final, modelos e convidadas especiais ocuparam as suas posições no centro da sala — cada uma delas tinha o nome escrito no chão, um quadro poético que esconde as reticências de um criador de moda português.
“Estou da cor da colecção, em branco. Não sei que cores é que o futuro vai trazer. Mas acho fundamental falar disso abertamente. As coisas estão mesmo difíceis e a moda de autor é um nicho muito pequenino. Ouvimos tantas pessoas de tantas profissões falar sobre as questões que as preocupam e nós não falamos. É fundamental que o façamos”, desabafa. “É uma área que não tem sido nada apoiada e um país sem moda autor é um país manco culturalmente. Sim, porque a moda de autor é cultura.”
Nuno Gama: e o Alentejo aqui tão perto
O último dia da ModaLisboa ia a meio quando Nuno Gama puxou para si as atenções. E ninguém domina tanto a arte de fazer de um desfile um acontecimento como o designer sediado em Lisboa, presença assídua desde a primeira edição. Desta vez, não foi diferente. A colecção Outono-Inverno 2021/2022 chegou com trejeitos de performance. Os manequins chegaram em blocos de cor — beges, castanhos, verdes, rosas — numa alusão ao refúgio redescoberto pelo designer durante a pandemia, o Alentejo.
“Tem a ver com uma viagem, com um estado de espírito. Durante estes dois anos, nem toda a informação foi fácil de gerir. No Alentejo, quando olhas, continua a haver sol, há passarinhos a cantar, ainda há abelhas, há flores, há árvores. Portanto, as coisas continuam”, refere. Dos campos de trigo à pastorícia, o elogio da planície atravessou praticamente toda a colecção.
Há dois anos que Nuno Gama deixou de antecipar estações. Na mesma colecção, reuniu agasalhos de Inverno, calções e uma mão cheia de itens confortáveis, ainda pensados para transitar de volta do novo para o velho normal, ou até mesmo para viver entre ambos. “São peças muito mais desestruturadas, um mix pós-pandémico do fato de treino, da roupa de jogging e do pijama.”
Gonçalo Peixoto: uma colecção para Alice
No meio de transparências, lantejoulas, bralettes e decotes que desafiam as leis da gravidade, Gonçalo Peixoto encontrou espaço para uma homenagem. Alice, a avó, deixou um lugar vazio na família, mas o álbum de recordações continua bem presente para o jovem designer. “Tentei trazer a memória dela para a colecção, escrever uma carta de amor que vai ficar para sempre, através dos looks, das silhuetas, dos tecidos, de tudo. Acho que ela está feliz”, admite.
O estilo da marca esteve praticamente intacto. Vestidos curtos, barrigas expostas, decotes, ombros cheios de volume, tons adocicados e brilhos inebriantes. “Queria algo que gritasse Gonçalo Peixoto, mas que me trouxesse esse amor que tinha pela minha avó, que, aliás, era super vaidosa.” Entram os tricots, os folhos mais românticos, as flores bordadas sobre organza, os brocados — um índice de memórias felizes que transportam o criador para a infância, seja o jardim repleto de rosas ou o sofá da sala.
O atrevimento e a sensualidade que imperaram nas duas últimas colecções viram-se mais contidos e combinados com peças mais descontraídas. “Há uma saia abaixo do joelho, como a minha avó usava, que desfilou precisamente com uma peça em tricot, o mesmo tricotado que ela me ensinou a fazer”, assinala.
Plumas e lantejoulas foram as adições feitas para o desfile deste domingo. No final de Setembro, Gonçalo apresentou a sua colecção em Milão. Cerca de duas semanas depois repetiu a dose, mas com o dobro (ou mesmo o triplo) do alarido. Na primeira fila, sentaram-se as embaixadoras da marca: Rita Pereira, Bárbara Bandeira, Mariana Machado, Carina Caldeira, Carolina Patrocínio, Isabela Valadeiro, Bárbara Lourenço, entre outras. Assobios e aplausos não deixam dúvidas: para onde vai, o jovem Peixoto leva consigo uma legião.
Relógios, volumes e punk no feminino
O dia começou com Valentim Quaresma e uma reflexão sobre o conceito de tempo. As peças de joalharia do criador português incorporaram mecanismos de relógios e assumiram escalas diversas, dos espectaculares adereços de cabeça às imponentes armaduras. O designer estendeu a inspiração ao vestuário. O preto voltou a predominar, acompanhado por castanhos e laranjas, com motivos alusivos às mesmas engrenagens.
Seguiu-se o desfile da portuguesa Buzina, fiel à sua silhueta volumosa. Do último Verão, a marca de Vera Fernandes resgatou os motivos animais que preencheram vestidos e blusas. Para a próxima estação quente, propôs uma nova fluidez. Algumas das cinturas estreitaram-se, enquanto outras cresceram em volumetria com recurso a acolchoados e saias longas. Nem só de roupa viveu o desfile. Os sapatos também mereceram destaque e resultaram da colaboração da marca com a (também) portuguesa Zilian. As clientes não tiveram de esperar — a colecção ficou imediatamente à venda na loja online.
Horas depois, chegou João Magalhães, o homem que desarrumou o Capitólio para receber aquilo para que a sala foi feita: um concerto. O punk no feminino das Sea Angels encheu a sala. Só depois os primeiros coordenados, uma mistura de estampas psicadélicas com clássicos do guarda-roupa feminino (incluindo o tailleur Chanel) ironizar. Malhas, lantejoulas e volumes exagerados fizeram do desfile um momento de pura extravagância punk.
ModaLisboa: a caminho do velho normal
Durante quatro dias, mais de 20 marcas e designers passaram pela passerelle montada, primeiro na Estufa Fria e depois no Capitólio. A 57.ª edição da ModaLisboa, a mesma em que se assinalaram os 30 anos do evento, decorreu em formato híbrido. Os desfiles voltaram a ter público, embora com uma lotação de 200 pessoas, ao passo que a grande parte da programação paralela aconteceu exclusivamente online.
“Achámos que íamos ter um bocadinho mais de liberdade do que aquela que nos foi imposta. Os festivais estão todos a bombar, as discotecas, que são recintos fechados, também têm milhares de pessoas. Imaginei que não fosse preciso máscara, mas ainda foi exigido”, afirma Eduarda Abbondanza, presidente da ModaLisboa, em jeito de balanço. “Passar para um sítio maior seria muito violento para nós e para quem viesse. No passado, nunca pudemos estar aqui pela nossa dimensão. Foi uma oportunidade que não se voltará a repetir.”
Sobre os designers portugueses, Abbondanza destaca a adaptação, sobretudo no caso das gerações mais velhas, a um novo contexto. “Acho que eles tiveram uma resistência extraordinária, sobretudo porque a área da moda tem sido um verdadeiro filme de terror. A capacidade que tiveram de se reinventarem, de se reorganizarem e de irem à procura de soluções num momento em que estava tudo parado.” Para Março do próximo ano, o Pátio da Galé está garantido, mas a organização equaciona outros cenários para mostrar o trabalho dos criadores nacionais. A mira está apontada para a zona oriental da cidade.
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