Notícias

O “anjo da morte” que traz um novo princípio

‘A Senhora de Dubuque’ marca o regresso de Cucha Carvalheiro ao Trindade. Em palco, a actriz faz o pleno, dez anos depois de ter deixado a direcção deste mesmo teatro. “Acabamos sempre por voltar aos lugares onde fomos felizes”, diz.

Jornalista
Cucha Carvalheiro
Francisco Romão PereiraCucha Carvalheiro em sua casa
Publicidade

Poderíamos ir até Nietzsche e recordar as premissas que o filósofo alemão deixou plasmadas no conceito de “eterno retorno”. A verdade é que há acontecimentos que parecem, à partida, determinados a suceder novamente. Dez anos depois de ter deixado o cargo de directora artística do Teatro da Trindade, a actriz e encenadora Cucha Carvalheiro regressa ao palco desta casa como uma das protagonistas de A Senhora de Dubuque, celebrada peça do dramaturgo norte-americano Edward Albee, com encenação de Álvaro Correia. O espaço é-lhe familiar. Regressa de forma inusitada, diz, numa “mistura de vontades e encontro de sensibilidades”, e com uma personagem “muito irónica” que há já alguns anos desejava interpretar. A peça, que se estreia a 29 de Fevereiro e se mantém em cena até 21 de Abril, materializa esse momento que é, afinal de contas, de celebração. “Acabamos sempre por voltar aos lugares onde fomos felizes.”

Ainda numa fase embrionária para saber exactamente quais serão as tonalidades do dispositivo cénico criado, a verdade é que a personagem que interpreta tem pontuado de sucesso a carreira de grandes actrizes. No seu caso não será diferente. Enigmática, por vezes vista como “anjo da morte”, a senhora de Dubuque é um exemplo máximo da mestria presente na escrita de Albee. Escreveu-a como alegoria, em 1980, para falar das civilizações decadentes e para abordar a complexidade das relações humanas. É a primeira vez que chega a um teatro português. O encenador Álvaro Correia salienta, desde logo, a ressonância com a actualidade. “Fala da decadência dos Estados Unidos da América, mas também se liga ao momento que se vive na Europa, com a guerra que regressou a este espaço, e fala das doenças que não têm cura e que prenunciam a morte de um ser humano”, explica. Os ingredientes conduzem-nos de novo à personagem de Cucha Carvalheiro, elemento de disrupção, que volta a impor a mais velha das questões identitárias: “Quem somos nós afinal?”

Debruçamo-nos por um momento no que se vai passar em palco. Quatro casais encontram-se, três deles formam um aparente grupo de bons amigos. A festa, em que se conversa e joga, passa-se na casa de Jo e Sam. Naquilo que inicialmente parece um momento de convívio feliz, ascende uma tensão, que ganha contornos de tragédia, com a chegada inesperada do quarto casal, na qual uma elegante senhora – a senhora de Dubuque – e o seu sofisticado companheiro expõem ainda mais o potencial destrutivo do grupo. Jo, a anfitriã, tem um cancro terminal e cria uma empática relação com a personagem de Cucha Carvalheiro. Por que razão se dá este entrelaçar de contornos maternais? É ver para crer.

Cucha Carvalheiro em cena em ‘A Senhora de Dubuque’
Alípio Padinha/Teatro da TrindadeCucha Carvalheiro em cena em ‘A Senhora de Dubuque’

Albee ocupa um lugar especial no percurso de Cucha Carvalheiro. Já lhe garantiu um Globo de Ouro, em 2005, num espectáculo também encenado por Álvaro Correia, intitulado A Cabra ou Quem é Sílvia?. O autor de Quem tem medo de Virginia Woolf, que morreu em 2016, deixou um teatro repleto de questões que se por um lado não esquecem o momento histórico, por outro nunca deixam de lado temáticas fundamentais sobre a condição humana. No entanto, a razão pela qual regressam a Albee teve uma outra ignição. “Recentemente andámos à procura de uma peça para fazer e que nos pudesse juntar novamente, e também com a Manuela Couto”, conta Cucha. Depois de uma conversa com Diogo Infante, director do Teatro da Trindade, o projecto encaminhou-se. Além de Cucha e Manuela, o elenco conta ainda com as participações de Alberto Magassela, Álvaro Correia, Fernando Luís, Filomena Cautela, Renato Godinho e Sandra Faleiro. O encenador não esconde o tributo a Cucha Carvalheiro. “Acaba por ser uma forma de homenagem. Eu nunca tinha lido a peça, mas a Cucha sempre me disse que gostava particularmente desta personagem. Será um bom momento também para o seu percurso e no qual regressa a um teatro que dirigiu com sucesso”, explica.

Um teatro mais abrangente

A actriz e encenadora foi directora do Teatro da Trindade, entre 2009 e 2013. Foi afastada do cargo por justificações de ordem orçamental, tendo dito à época que se sentiu “descartável”. Quando ali entrou, sublinha, encontrou uma estrutura que tinha ainda uma forma de funcionamento pouco profissional. “Foi uma etapa que me deu muitas alegrias, embora tenha enfrentado diversas condicionantes. O fim não foi bonito. Acho que a administração não se portou bem comigo, mas felizmente muita coisa mudou desde então”, resume. É mais fácil voltar agora, sobretudo por marcar o seu regresso a um palco que já conhece bem. Sem as preocupações de gestão que carregava nessa época, Cucha Carvalheiro diz-se feliz por ter a chance de voltar a pisar as tábuas que foram determinantes no seu percurso profissional.

Recorda, no entanto, o que ali fez e que, acredita, também espelha muito a realidade que é vivida hoje neste destacado palco português. “No Trindade dei espaço a muitos artistas, alguns bastante jovens, e foquei-me na sua gestão e programação. A sensação que tinha é que era algo muito pesado, mas creio que foi importante para a estrutura que está hoje muito bem dirigida nas mãos do Diogo Infante.” Ali voltou somente como encenadora, com a peça À boleia para Hollywood, em 2017. Já em Fevereiro o regresso faz-se como actriz, ainda que não se trate do fecho de um ciclo – como se poderia pensar. “Pelo contrário, espero que seja um princípio”, afirma.

O entusiasmo perante o momento é igualmente partilhado por Diogo Infante. “Foi algo pensado. Tínhamos vontade de ter a Cucha no elenco e, em diálogo com o Álvaro Correia, encontrámos um texto que tinha essa compatibilidade. Queríamos que ela regressasse, porque não só a admiro há muitos anos, como passou aqui um período importante, que me deixou, de alguma forma, como legado. É também por isso um agradecer e uma forma de a honrar”, realça. Dez anos depois, explica o actual director artístico, o Teatro da Trindade assume a sua tendência pelos clássicos e uma forma de teatro, por vezes mais comercial, que vai ao encontro das expectativas dos diferentes públicos.

Cucha Carvalheiro
Francisco Romão PereiraCucha Carvalheiro

A peça de Edward Albee, por todos os temas que carrega e o elenco que se reúne, é mais um exemplo do que se pretende e que sem pessoas como Cucha não teria o mesmo impacto, destaca Diogo Infante. “É evidente que toda a herança que recebi dos antigos directores na fixação de alicerces profissionais, e numa lógica de um teatro mais abrangente, criou a base e permitiu potenciar quem tem feito do Trindade uma referência com espectáculos regulares e de carreiras longas. Os espectáculos precisam desse tempo para o público poder apreciar”, completa. 

A Senhora de Dubuque não deixa de ser uma forma de contar este périplo de Cucha Carvalheiro. Uma década volvida e depois de uma saída um tanto ou quanto atribulada, regressa ao Teatro da Trindade para fazer o que melhor sabe fazer, aos 75 anos, mas com muitos desejos e ambições pela frente. “Tenho a sorte de ter uma profissão que em princípio posso exercer até morrer. É uma maneira de não envelhecer e esta personagem também transporta esse lado de fuga face a tudo aquilo que o passar dos anos traz. Acima de tudo, o que desejo é continuar a trabalhar e a poder interpretar personagens, como esta, que não deixam de nos surpreender perante a vida”, termina. É assim que se faz um eterno retorno.

Teatro da Trindade INATEL (Chiado). 29 Fev a 21 Abr. Qua a Sáb 21.00, Dom 16.30. 14€-20€

+ No teatro, Carolina Deslandes e Bárbara Tinoco fazem a revolução (com amor)

+ As melhores peças de teatro para ver esta semana

Últimas notícias

    Publicidade