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O ‘Baile de Peruca’ do colectivo ARCANA é um acto de resistência

O álbum de estreia do colectivo é um convite à festa e ao confronto, anunciando “uma era para bichas e putas”. É apresentado esta quinta-feira, 3, no Musicbox.

Luís Filipe Rodrigues
Editor
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“Vou-me sustentar de saia, vou-me sustentar de saia, vou-me sustentar de brinco, vou-me sustentar de colar, vou-me sustentar de anéis, eu vou-me sustentar. Com tudo o que eu tenho direito nesse mundo”, promete – com a voz trémula, a engolir as lágrimas –ALLiAN, tcp LAVA, pessoa não-binária e racializada do colectivo ARCANA, em “Vou-me Sustentar de Saia”. Um interlúdio magnético e raro momento de fragilidade em Baile de Peruca, disco urgente, acto de resistência, convite à festa e ao confronto, anúncio de “uma era para bichas e putas”. Questão de vida ou morte. 

O álbum foi apresentado em Julho no Passos Manuel (Porto), e ouve-se finalmente em Lisboa, esta quinta-feira, 3, no Musicbox, numa edição de “regresso às aulas” da festa IN.TRAVA, promovida pelo colectivo queer portuense. Baile de Peruca é o culminar de quatro anos de trabalho do cantor e produtor brasileiro ALLiAN, junto com o DJ e músico Bug Snapper (vulgo Rui Santos, também dos roqueiros Cat Soup), Nascalmas, artista multidisciplinar que participa numa das faixas e entretanto se juntou oficialmente ao colectivo; antigos membros como Ara Flama, Jayde ou Cyber Angel; e uma longa lista de convidados e co-conspiradores, que inclui nomes como Odete, Puta da Silva, Phaser, Leexo, Co$tanza ou PIPA DE MA$$A.

“O Baile de Peruca é como um livro de diários para mim”, descreve ALLiAN. Mas estas histórias não só dele. “[Fazer] um álbum colectivo é complexo. É um apanhado de gente, de cronologias, de emoções, de convívios, de cigarros à janela, de baseados no estúdio, de vais e voltas”, resume. “Tinha 17 anos quando comecei a escrever aquelas músicas, hoje tenho quase 22. Por isso, muita coisa mudou.” Não obstante, continua a cantar estas canções com a mesma urgência que sentia quando as começou a escrever e produzir. “Tanto que depois dos concertos deste disco quase sempre fico sem voz”, acrescenta. 

Vale a pena ficar afónico quando se diz o que há a dizer. “É um álbum de resistência”, sublinha. De “putaria”, também. “Tem sonoridades que perpassam o funk, no entanto com uma pegada mais industrial e desconstruída; esta mistura de elementos foi a proposta conceptual e sonora do disco como um todo – unir as latinidades que carrego (...) com bases, sintetizadores e beats mais ligadas ao mundo electrónico”, prossegue. Contudo, esconde momentos de fragilidade, pontos sensíveis. Só que “não vêm em forma de canção, mas sim interlúdios, como ‘Vou-me Sustentar de Saia’ ou ‘Monólogo de Orfeu’”, a partir de Vinicius de Moraes, a encerrar as hostilidades.

“Decidi proclamar [esse] poema porque queria trazer um final mais dramático ao disco, no sentido teatral do termo. Essa faixa tem uma textura que me agrada muito, ela pausa um pouco a aventura maluca e experimental que foi o disco e traz um respiro muito sincero e necessário”, considera. “E está ligada ao histórico do Teatro Experimental do Negro, a primeira companhia de teatro feita por pessoas negras no Brasil. Então eu, enquanto pessoa racializada, fico muito honrado de poder acabar o primeiro disco que participei com algo tão importante para o meu país. A carga poética é também muito linda, por isso a faixa foi comprada pelo dramaturgo Rui Catalão para uma peça de dança contemporânea que estreou [em Setembro] no Teatro Municipal do Porto”, aponta ALLiAN.

Processo revolucionário em curso

Antes de fazer suas as palavras de Vinicius de Moraes na última faixa (nome completo: “Melhor Álbum do Ano / Monólogo de Orfeu”), ALLiAN refere-se a este Baile de Peruca como o “melhor álbum do ano”. Acredita mesmo nisso? “Por vir do teatro, creio que essa necessidade de inventar metanarrativas e me imaginar em lugares que até então só existem no mundo dos sonhos”, começa a justificar. Mas… “Pessoalmente, acredito mesmo que foi o álbum mais importante do ano produzido em Portugal, tanto pela carga conceptual quanto pelos featurings e tudo que simboliza. Tudo foi e é grandioso, porque não assumi-lo?”

Passado um bocado, reforça esta ideia. “Acredito mesmo que é o álbum mais importante que saiu nacionalmente este ano, há uma urgência de dar spotlight a esses artistas, mostrar as suas vozes, continuar um processo que genuinamente é revolucionário. Em 2022 aconteceu algo inédito – havia a LÍBIDA, uma festa lésbica, a acontecer nas Caldas da Rainha; a IN.TRAVA, uma festa trans-centrada, a acontecer no Porto; e a ARVI+ a acontecer em Lisboa, tudo na mesma noite”, recorda. “Ter três festas queers a acontecer num país onde uma já era algo difícil é uma revolução cultural, de facto. Desde sempre apresentámos o live show deste disco, desde a primeira festa. Por isso a história deste álbum acompanhou também as histórias dessas manifestações culturais.”

Reconhece, no entanto, que ainda há muito trabalho pela frente. Enquanto pessoa não-binária e não-branca, “o sentimento de ter que fazer o dobro ou o triplo para ser visto pelos outros” está sempre presente. No dia-a-dia, o medo e a intolerância parecem estar a ganhar terreno. E, no limite, a fomentar a violência. “Portugal sempre foi um país racista, no entanto, com tantos cartazes, anúncios, publicidade, etc... abertamente xenófobos, é óbvio que as pessoas vão sentir-se seguras para declarar o ódio delas, que durante muito tempo estava apenas guardado”, considera. 

“E muitas pessoas são lavadas cerebralmente por estes discursos, isso influencia também. Tenho uma amiga, por exemplo, que virou conservadora, uma mulher bissexual que está numa relação com uma travesti e um homem cis. Faz algum sentido?” Não faz. “É tão bizarro e complexo. As pessoas não conseguem ir atrás do que lhes fere os direitos porque estão ocupadas demais trabalhando para pagar a renda, a maioria não vive na bolha esquerdista queer, em que claramente temos mais noção do que se aproxima do fascismo, do discurso de ódio, dos ataques violentos”, lamenta. “A maioria da população está sem esperança, sem dinheiro, por isso a criminalidade aumenta e a ignorância vem ao de cima.”

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Mas o colectivo ARCANA vai continuar a resistir. E a dar um palco e uma plataforma a pessoas que durante demasiado tempo não o tiveram. Como os convidados para a apresentação de quinta-feira, 3. São eles: Marcolan, representante da festa Furacão D17; MX, DJ recém-chegada do Brasil; N▲N▼, violinista e performer; e Umafricana, DJ e escritora do livro Para que fique bem escurecido.” Pessoas racializadas “que estão movimentando a cena cultural lisboeta”, nas palavras de ALLiAN. “Cada artista irá apresentar um DJ set no espaço de clubbing do Musicbox, sendo que N▲N▼ e Marcolan irão unir-se num só acto, resultando num set híbrido de violino e baile funk.”

Musicbox (Lisboa). 3 Out (Qui). 00.00. 12€

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