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Aos sábados, há festa no 18 do Príncipe Real. Fomos conhecer a tertúlia musical com mais sotaques de Lisboa.
A cada sábado à noite, há um palacete no Príncipe Real que esconde uma rua dentro. Uma rua onde se samba e se canta o fado, onde o português se desdobra em sotaques e a música tem sede de vinho. Há cerca de dois anos que os lisboetas se podem passear pela Rua das Pretas, a tertúlia musical que Pierre Aderne criou há mais de uma década, no Rio de Janeiro.
Ouve-se português do Brasil, inglês e francês a despontar por entre a música de Moreno Veloso, enquanto os copos são tingidos de tinto. E é em caixas de vinho, espalhadas pela sala e cobertas com pequenas almofadas, que a gente se senta e dá duas de letra. Já o sofá colorido e os bancos circundantes – “palco” daquele concerto intimista – vão sendo ocupados por uma quase-orquestra de cordas. Há várias guitarras, uma guitarra portuguesa, um contrabaixo e uma multitude de pequenos instrumentos – do pandeiro ao chocalho, do agogô à viola caipira – em cima de uma mesa de centro que quase transborda de vinho. “No final da noite, vão ser mais de nós aqui do que aí”, brinca Pierre, quando a multidão de músicos já está instalada.
É com um assombroso a cappella de “Estranha forma de vida”, na voz de Joana Amendoeira, que a noite arranca. Só depois chega a fanfarra, que se faz sem amplificação – “Este é o tipo de música que fazemos longe dos palcos”, introduz Pierre, antes de cantar a sua “Vida de Estrela”. No público, as cabeças inclinam-se: há sorrisos tímidos e caras trancadas. Tudo dependendo da canção, pois ali tudo se mistura – o samba com o fado, a bossa com o funaná. As pronúncias sobrepõem-se, misturam-se, sobre as cordas. E, por entre as melodias, há histórias que cruzam Amália, Carlos Paredes, João Gilberto e Tom Jobim. O narrador é Pierre, que intercala o inglês com o português sem esforço ou regra e arranca risos às habituais sete dezenas de pessoas.
Numa dessas pausas, conta que a Rua das Pretas nasceu numa outra rua já popularizada em canção: a Nascimento Silva, no Ipanema, onde Tom Jobim vivia e Pierre Aderne também. “Em 2006, resolvi fazer uma tertúlia musical, relembrando os saraus que eram feitos em casa do Tom, mas com os músicos da minha geração”, conta. O que começou como homenagem tornou-se num ponto de encontro: “Por lá passaram Maria Gadú, Gabriel Moura, Dadi, Edu Krieger, Teresa Cristina, Seu Jorge. E aquilo virou um laboratório onde a gente mostrava canções inacabadas.”
Em 2011, veio para Portugal e trouxe a ideia, já melhorada : reunir a música de língua portuguesa à volta de um sofá, fosse ela de que continente fosse. “Foi muito interessante porque, mesmo dentro de um nicho de música, não era comum os artistas se encontrarem. A Luísa Sobral conheceu o Mário Laginha, o Luís Caracol conheceu o Jorge Palma na minha casa.” E a Rua das Pretas também se faz das histórias destes encontros.
Ao longo da noite, a sala sob o lusco fusco vai-se enchendo, não só de gente que quer ver, mas de gente que sabe tocar. E, há medida que se desfiam canções, quem não conhecia Pierre Aderne passa a saber que é ele o poeta por trás da “Guia”, do António Zambujo, da “Mina do Condomínio”, do Seu Jorge, ou da “Preciso mentir que te amo”, do Jorge Palma – do qual o brasileiro faz uma impressionante imitação, com a pronúncia no ponto.
O vinho continua a correr ao som de algumas canções do álbum Rua das Pretas, lançado há um par de meses – uma compilação de originais nascidos daquelas tertúlias, que falam de amor ou vinho. Ou, como habitual, dos dois. Para lá de se ter convertido neste objecto artístico, este sarau ganhou asas e migrou para o Porto, Paris e Nova Iorque, cidades onde se realiza mensalmente ou a cada dois meses. A 15 de Fevereiro chega a Madrid, tal como um “circo itinerante de música” que inclui nos números músicos locais até porque, tal como Pierre admite, “a mistura é o que mais interessa neste projecto todo”.
Praça do Príncipe Real, 18. Sáb 19.30-00.00. 36€. Reservas: www.ruadaspretas.com