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Lisboa começa em Santa Clara. É com esta convicção inusitada que a 14.ª edição do Festival Todos aterra na freguesia, que agrega as zonas da Ameixoeira e da Charneca (entre outras). Depois de um ano de pesquisa e trabalho com escolas, associações e moradores, o Todos apresenta uma programação que junta instituições locais com profissionais das artes, entre sábado e domingo. O resultado pode ser visto em vários pontos da freguesia, sobretudo no Largo das Galinheiras e no Jardim do Campo das Amoreiras. São mais de 20 actividades a ocupar o fim-de-semana, como sessões de cinema, teatro, concertos, circo ou workshops. A programação ao ar livre é gratuita, a restante tem lotação limitada e o valor de 3€ por pessoa.
“O Todos nasceu com a missão de celebrar a interculturalidade e de criar projectos ao longo dos anos que permitissem um encontro das várias culturas”, explica Miguel Abreu, director do festival e da Academia de Produtores Culturais, que o promove. A iniciativa, que surgiu por encomenda da Câmara Municipal de Lisboa, acontece desde 2009 e já passou por bairros como o Intendente, a Mouraria ou a Graça. Sempre com o objectivo de “misturar as pessoas em vez de as manter segregadas, e tentar que no mesmo bairro possam conviver pessoas de várias etnias e de várias origens sociais”. Isto através de projectos culturais que convidam os moradores a relacionarem-se para criarem peças de teatro, espectáculos de música ou bancas de gastronomia. Esta edição do festival acontece em Santa Clara, onde a equipa do Todos se fixou desde o ano passado. “Trabalhamos três anos em cada bairro, também para não nos substituirmos às entidades locais.”
Apesar das actividades do Festival Todos se concentrarem no fim-de-semana de 10 e 11, a programação arrancou logo no dia 1, com o início da performance Lisboa Crossing, no âmbito da Temporada Cruzada Portugal-França 2022. Trata-se de uma travessia pela cidade de Lisboa que começou no Campo Pequeno, a 1, e termina no Largo das Galinheiras, a 11. Durante 13 dias, os artistas franceses Laurent Boijeot e Sébastien Renauld, acompanhados do fotógrafo Clément Martin, trocam o conforto das suas casas pelas ruas lisboetas, onde dormem, comem, carregam a mobília para o próximo ponto e conversam com quem se aproxima.
“Fazemos isto há dez anos, já não sabemos o número de cidades ao certo [por onde passámos]. Se juntarmos o tempo ininterruptamente, é cerca de um ano a viver na rua”, diz Sébastien Renauld. O percurso dos artistas está disponível no site do festival e também é possível assistir ao streaming em directo na página de Facebook. “As pessoas são muito generosas, trazem-nos comida tradicional portuguesa”, partilha Laurent Boijeot, enquanto nos oferece ginjinha e ovos moles de Aveiro. “O Lisboa Crossing dá a oportunidade a toda a gente de ser boa. [Os artistas] estão na rua sem medo que lhes façam mal ou que os roubem. E, muitas vezes, as pessoas precisam destas oportunidades para mostrarem que vão ser boas”, reflecte o director do festival.
Para o fim-de-semana, estão reservadas as três peças de teatro desenvolvidas juntamente com a comunidade. As Mãos das Águias, com sessões no sábado, às 15.00 e às 17.30, e no domino, às 12.00 e às 17.00, foi criada com a ajuda de 140 alunos da Escola Básica Maria da Luz de Deus Ramos, a partir de textos de Mia Couto, Miguel Jesus e Luís-Bernardo Honwana. Não Existem Cabeças Bicudas, em exibição de sexta a domingo, pelas 15.00, conta com artistas locais e idosos do Centro de Desenvolvimento Comunitário da Charneca, que pensaram questões como a vida de bairro ou o racismo. E O Condomínio, em cena gratuitamente no sábado e no domingo, às 17.40, criado juntamente com pessoas de vários bairros lisboetas, como a Graça, o Príncipe Real e Santa Clara, com o objectivo de reflectirem sobre como se deve “gerir o que é comum”.
Com uma programação adaptada a cada bairro, o Todos recebe no Jardim do Campo da Amoreiras, às 16.00 de domingo, o espectáculo de circo Violeta, que junta acrobacias circenses a música ao vivo. No mesmo dia e local, pelas 18.30, o bailarino luso-espanhol João Lara apresenta o espectáculo de dança flamenca El Duende Flamenco. Ambas as actividades são “pensadas para toda a gente, mas essencialmente para a comunidade cigana”.
Noutro pólo da freguesia, há programação dedicada à comunidade africana residente em Santa Clara. Desde o concerto da Orquestra de Batukadeiras de Portugal & Fio à Meada, no Largo das Galinheiras, às 16.30 de sábado, que junta mais de 50 mulheres de Cabo Verde e Portugal, ao concerto da Orquestra Todos & Selma Uamusse, no mesmo local, pelas 18.00 de domingo, com músicos de várias nacionalidades a acompanharem a cantora moçambicana. “Se tentássemos forçar o contacto entre estas duas comunidades [cigana e africana], uma delas não iria. Por isso decidimos criar eventos em simultâneo, cada um mais orientado para cada uma delas”, começa por explicar Miguel Abreu. E continua: “Não é a missão da interculturalidade, mas o caminho faz-se caminhando e, neste momento, é importante ganhar capital de confiança sem impor nada”.
Outro dos destaques da programação é o ciclo de cinema A Céu Aberto a decorrer no Cine-Estrela, no Campo das Amoreiras, o antigo “cinema piolho” da freguesia. “Encontrámos o local em ruínas, ainda com o ecrã, e recuperámos um bocadinho para ter qualidade de projecção e para poder receber pessoas.” Na primeira noite do festival, é exibido Umrao Jaan, de J.P. Dutta, já na segunda noite é possível assistir a O Ás Vale Mais, de Giuseppe Colizzi. Ambas as sessões acontecem às 20.30 e os bilhetes podem ser adquiridos online ou nos pontos de venda aderentes BOL.
A restante programação inclui ainda exposições fotográficas, instalações, visitas guiadas por locais emblemáticos da freguesia, workshops para jovens e crianças e bancas de comidas do mundo. Todas as actividades podem ser consultadas no site oficial do festival.
O local de cada edição é seleccionado pela Câmara Municipal de Lisboa, sendo que até agora a organização tem trabalhado no centro da cidade, “ou a transformar aquilo que possa parecer periferia em centros atractivos”. É o caso de Santa Clara. “Apesar de estar a menos de 20 minutos de carro do centro da cidade, continua a haver quem nem saiba onde ficam as Galinheiras”, lamenta Miguel. Além de promover o encontro entre culturas dentro de um bairro, o Todos quer também chamar pessoas de fora e “acabar com a ideia de que há não-lugares, lugares para uns e lugares para outros, ou lugares interditos na cidade”.
No próximo ano, o Todos mantém-se na freguesia de Santa Clara. “Este ano trabalhámos mais na Charneca e nas Galinheiras. Para o ano estaremos mais na Ameixoeira”. A partir de 2024, o trabalho do festival deverá ter continuidade através da Quinta Alegre, o equipamento da Santa Casa da Misericórdia gerido pela Câmara Municipal de Lisboa, no Campo das Amoreiras.
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