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Entre os últimos pingos de chuva de Inverno e os primeiros esboços de Primavera, o momento é de comunhão e de cruzamento entre natureza e tecnologia. Ultrapassada a sazonalidade, nada melhor do que pôr a criatividade a funcionar. Estamos na Serra do Louro, de frente para o Parque Natural da Arrábida, com o castelo de Palmela à vista e uma mancha visual de Setúbal, junto ao mar. Depois de um percurso entre trilhos, o desafio começa numa sala rústica transformada numa espécie de hub criativo, com gadgets de diversos tipos. Óculos de realidade virtual, drones, câmaras e robôs controlados por sensores de movimento, luzes e ferramentas inovadoras para trabalhar na ambiência sonora fazem parte do cenário. Este é o primeiro de três dias (14 a 16 de Março) em que a companhia de teatro O Bando recebe no seu reduto, a quinta em Vale dos Barris, jovens de todo o mundo para reflectirem sobre a ligação entre duas dimensões que tantas vezes parecem distantes. O objectivo? Apresentarem criações que possam ser úteis e transformadoras no campo das artes performativas (e não só). É o futuro que passa por aqui.
“Como é que se conta uma história, em palco ou para lá dele? E o que é que a natureza nos diz sobre a criação artística?” As primeiras interrogações, lançadas pelo monitor Julian Jungel, servem de base para o que acontece nas horas e nos dias seguintes. São o mote para a nova edição do Play On!, um projecto de cooperação de larga escala da Comissão Europeia, sob a tutela da European Culture Funding Stream Creative Europe, criado para “perceber, aprender, testar e aplicar o potencial da tecnologia imersiva para teatro”, em diversas dimensões, seja Realidade Virtual (VR), Realidade Aumentada (AR), Som 3D, Holografia, Localização e Mapeamento Simultâneos (SLAM). “Começou na área dos jogos de computador e na forma como essas mecânicas podem comunicar com o teatro e com as artes de palco. Mais tarde, evoluiu para o desafio de fundir novas formas de contar histórias com uma variedade de tecnologias imersivas”, sintetiza o responsável.
Há jovens de diversos países e de diferentes campos de estudo. Dos Estados Unidos à Polónia, passando pela Noruega, Alemanha, Hungria ou Itália. Num grupo heterogéneo, há quem estude teatro ou artes e há quem esteja encaminhado nas áreas da engenharia ou da computação. Adi Singh veio da Noruega, estuda engenharia informática e esta é a primeira vez que se junta a um projecto com uma ligação inusitada às artes. “Pareceu-me um desafio interessante. Estou muito ligado ao hacking [o termo refere-se à reprogramação de um sistema, programa ou dispositivo] e à programação, mas acredito que estas áreas podem ser úteis no campo de criação artística”, realça. Assim que começa a exploração, os grupos criados de forma a cruzar áreas de estudo, pensam no que podem criar em pouco mais de 48 horas. No final, apresentam-se os resultados, tal e qual uma feira de ciências.
“Vamos testar possibilidades e explorar o sentido artístico e tecnológico. Como em tudo, há ideias que vão funcionar à partida e outras que falham, mas estamos aqui para aprofundá-las”, diz Julian. Nas primeiras horas, essa exploração começa em pequenos esboços, muitas conversas de grupo e caminhadas. “Podemos trabalhar com sensores e fazer uma caminhada sonora”, ouve-se num dos grupos. Noutros há ideias mais ligadas à experiência visual imersiva ou à criação de um jogo com óculos de realidade virtual. Nesta fase do designado digital campus, que agrega como parceiros nove companhias de diferentes países europeus, chega-se ao tema orientador, “Utopias concretas na era digital”. E, neste caso, é o espaço d’O Bando que serve de plataforma para a integração de tecnologias como forma de alterar a narrativa e transformar a experiência do espectador em espectáculos/instalações ou performances ao ar livre.
Faz parte da magia
A ligação natural da quinta à natureza motiva igualmente uma reflexão sobre o teatro que, em boa verdade, está ligado à inovação desde a sua origem. “Se existe uma área que foi sempre experimental foi o teatro, desde logo na concepção de cenários ou de ferramentas que permitiam melhorar as suas narrativas. Nos últimos anos, percebemos igualmente que os criadores estão cada vez mais em busca de tecnologias que potenciem as suas criações. Faz parte da magia de criar neste campo artístico”, sustenta Julian Jungel. A linguagem que agrega o lado mais experimental e tecnológico com as artes faz parte igualmente da forma de estar d’O Bando, que está a completar 50 anos de existência.
“Nós sempre estivemos entre o rural e o urbano, entre o artesanal e o tecnológico”, começa por destacar Raul Atalaia, que faz parte da companhia desde 1975 e que tem assumido as parcerias internacionais d’O Bando, nomeadamente em projectos como o Play On!, que aqui teve a sua primeira manifestação em 2019. “Gostamos de criar arte a partir do confronto de realidades e, a partir deste parque natural onde nos encontramos, perceber como é que podemos cruzar isso com as últimas descobertas ao nível do universo digital”, completa. No essencial, explica, O Bando sempre esteve interessado em funcionar como espaço de reflexão que junte pessoas de diferentes áreas do saber. “Este projecto faz parte de uma decisão antiga da companhia em que mantemos a nossa forma interventiva de estar em Portugal, mas sem nunca perdermos a ligação com outras realidades a nível cultural e artístico, desde logo na Europa”.
Num movimento de “dar a ver”, mas também de aplicação para o futuro, o projecto dá à companhia as sinergias necessárias para se constituírem como “centro de arte” e incubadora de ideias.
Três dias volvidos de exploração, é tempo então de se descobrir o trabalho que foi feito. Começamos com uma apresentação de uma aplicação móvel que nos oferece, aparentemente, habitats naturais sem que tenhamos de sair de casa. Rapidamente a apresentação é interrompida e a sala evacuada para nos confrontarmos com uma manifestação na própria natureza. Em diversos locais, pequenos robôs mecânicos ostentam cartazes a favor dos ecossistemas, com som e luzes à mistura. “A ideia foi a de criar um espaço performático na natureza, recorrendo ao uso de gadgets que faz parecer que existem pequenos seres, entre arbustos, que estão aqui para defender o que é deles”, explica uma das participantes.
Numa outra sala entramos num jogo de peddy-papper controlado à distância, em que as decisões de tabuleiro nos conduzem por diferentes experiências na serra. De seguida, um outro grupo decide colocar-nos numa pequena sala de controlo. Através do computador, vamos controlando um actor no espaço da quinta, à medida a que assistimos às suas acções, tal como num videojogo de first-person shooter (FPS). “O que seria se pudéssemos controlar através da plateia, as acções de um intérprete em palco?”, interroga um dos participantes. Mas há mais: num campus orientado para as experiências imersivas, os óculos de realidade virtual são um item cada vez mais procurado. Óculos postos e as nossas decisões levam-nos para uma verdadeira aventura com alguns membros da companhia O Bando. Ao mesmo tempo que exploramos o espaço, seguimos o actor Fabian Bravo numa história que em tudo parece distante da quietude presente em Vale dos Barris.
O epílogo destas apresentações está, no entanto, reservado para o grupo final. Numa black box, encontramos uma instalação visual e física de uma árvore ali resgatada. Colocam-nos sensores nos pulsos. “Ao levantar um dos braços, a árvore ganha vida e cores vivas, com o outro volta ao seu estado original de natureza morta”, explica um dos elementos do grupo. Em palco, são muitas vezes os criadores que podem dar vida e morte àquilo que faz parte do nosso mundo real. “É uma forma de podermos também criar alertas sobre os desafios que enfrentamos hoje em dia, colectivamente, desde logo pelo efeito das alterações climáticas”, destaca Julian Jungel. As artes performativas também podem, afinal, ser usadas como diagnóstico do mundo em que vivemos e, neste caso, é a tecnologia que possibilita essa fruição.
Chegados ao final de três dias intensos de pesquisa e criação, o Play On! esboçou tendências criativas que transformam a experiência do espectador, assim como a dos próprios criadores. “Encontramos aqui forma de prolongar a nossa acção de comunicação com o público e que provam como a tecnologia pode ser usada como forma de valorizar a obra de arte”, completa Raul Atalaia. Acima de tudo e sempre com a hipótese de se falhar, salienta-se a noção de que a arte – e o teatro em especial – não deve ser sacralizada, correndo-se o risco de ficar parada no tempo. Certo é também que estes jovens regressam para os seus países com a experiência vivida de que é possível aliar a natureza à tecnologia e pensar nas artes e do seu futuro a partir do presente.