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O homem, o estaleiro e a obra. A “introspectiva” de João Fiadeiro no MAC/CCB

Depois de um mês a ocupar o museu, João Fiadeiro apresenta a exposição “Restos, Rastos e Traços” até 22 de Setembro. Nas primeiras semanas, há um programa de espectáculos complementar.

Mauro Gonçalves
Escrito por
Mauro Gonçalves
Editor Executivo, Time Out Lisboa
Exposição "Restos, Rastros e Traços", de João Fiadeiro, MAC/CCB
© António Jorge SilvaExposição "Restos, Rastros e Traços", de João Fiadeiro
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A quietude própria de um museu é interrompida logo na primeira sala de "Restos, Rastros e Traços", exposição retrospectiva – expressão que o próprio artista prontamente substitui por introspectiva –, que ocupa por estes dias o Museu de Arte Contemporânea do CCB. João Fiadeiro permanece deitado no chão, paralelo aos objectos e móveis, numa sala de estar decomposta, objecto a objecto. Apresentada pela primeira vez em 2007, Este corpo que me ocupa foi uma das peças seleccionadas para ocupar uma das três salas da exposição.

Um corpo de trabalho – "e no trabalho", como frisa – que remete para colaborações estabelecidas com outros artistas ao longo do tempo, dos últimos 27 anos, para sermos exactos. Na sala, estamos perante I am sitting in a room different from the one you are in now, de 1997, de fotografias de Patrícia Almeida, de I Am Here, apresentada pela primeira vez em 2003, a partir da obra de Helena Almeida, ou de trabalhos realizados com Márcia Lança, Gustavo Sumpta, Ana Borralho e João Galante. Neste espaço, muitas delas vão ganhar vida através do corpo do próprio autor. Entre instalação, fotografia, vídeo e pintura, as artes plásticas que Fiadeiro sempre convocou desembocam numa derradeira manifestação, a performance.

Instalação 'Este corpo que me ocupa', João Fiadeiro
© António Jorge SilvaInstalação 'Este corpo que me ocupa'

"Fizemos um esforço imenso, durante 30 anos, para tentar destruir o palco, para arrebentar com os protocolos do aparato teatral. Aqui, estando num museu, esse esforço desaparece. Já não há a obrigação do espectador ficar parado durante uma hora, duas, virado para um só lugar. O visitante tem essa espécie de autonomia", explica João Fiadeiro, durante uma visita dirigida à imprensa, nesta terça-feira. Ao levar a performance para dentro do museu, o artista predispõe-se a interpelar os visitantes. Em "Restos, Rastros e Traços", estes até podem entrar à espera de ver obra estática, mas vão encontrar acção.

"Não existe diferença nenhuma entre o corpo de um performer e o corpo de um visitante que está no mesmo espaço. Essa espécie de invisibilidade permite que a performance comece do nada. Não é preciso dar início à performance porque, na verdade, já estamos na performance, só que ainda ninguém sabe. Compete ao performer activar esse desvio do quotidiano, esse desvio da expectativa para gerar um desequilíbrio no tempo-espaço que é, podemos dizer, uma definição possível de performance", continua. A própria inauguração, marcada para as 19.00 desta quarta-feira (a entrada é livre), terá um desses momentos. A partir daí, o autor admite a possibilidade de surpreender o público com "performances pop-up, uma ou outra".

Um estaleiro no museu

"Para um museu com tão pouco tempo como o nosso, teve quase um carácter psicanalítico. O museu encontra os seus limites, trata-se de uma negociação permanente em que o museu aprende e o público é confrontado com situações que provavelmente vão traduzir-se nalguma perplexidade." As palavras de Delfim Sardo, curador e administrador do museu, abrem caminho para a "introspectiva" da obra de Fiadeiro, mas também deixam antever um processo mais longo no tempo.

João Fiadeiro, que emerge enquanto coreógrafo no final dos anos 80, chegou ao MAC/CCB a 5 de Maio para montar aquilo a que chamam – artista e museu – de estaleiro. Uma residência artística onde incluiu um grupo de performers. Fizeram da montagem e preparação um acontecimento. Apresentaram-se ao público, com o nível de experimentação próprio dos processos criativos em curso. A segunda sala da exposição conta um pouco do que aqui aconteceu durante o último mês e meio. Uma barricada divide o espaço. Foi construída com toda a sorte de materiais encontrados nas catacumbas do CCB. Na base da instalação está Existência, espectáculo estreado em 2002, aqui mesmo, no Pequeno Auditório.

João Fiadeiro, MAC/CCB
© Lucas DamianiUma das performances que teve lugar durante o estaleiro de João Fiadeiro no MAC/CCB

"Durante um mês, [este] foi o nosso estúdio. E foi aqui que fizemos performances diárias, com seis performers que me acompanham e que fazem parte da própria introspectiva. Parte do conceito é trabalhar sobre a relação com aquilo que fica para trás. E nesse sentido acho muito importante que a passagem de testemunho se dê num acto, ao vivo. Que não se dê através dos livros, de vídeos, através de relatos, exclusivamente", adiciona Fiadeiro. Confrontados por Fiadeiro com objectos e assemblagens inesperadas, alguns dos performers gravaram relatos na primeira pessoa. Em vários pontos da sala, há auscultadores que convidam os visitantes a escutar os testemunhos do estaleiro.

Um regresso a Helena Almeida, 20 anos depois

"Se eu tivesse de resumir o meu corpo de trabalho numa só peça, seria neste objecto." Em 2004, João Fiadeiro estreou I Am Here, a partir daquilo que interpretou como sombras numa série imagens da artista portuguesa. Vinte anos depois, revisita esse espectáculo seminal – também ele exposto logo no início, na primeira sala –, numa nova instalação. "Existe uma série de sete imagens da Helena Almeida em que ela está de costas e atrás tem um pigmento e esse pigmento vai-se deformando. Eu li esse pigmento como sombra. Para ela, era o vestido. Aliás, há uma história muito bonita com a Helena Almeida. Quando falei de uma sombra, ela perguntou se a estava a confundir com a Lourdes Castro", recorda o artista.

Aqui, a performance foi gravada às escuras, em três espaços diferentes. De um lado, os visitantes podem ver as imagens. Do outro, as telas com o rasto de cada movimento. "Quem vem por aqui entra nos bastidores. Portanto, tem acesso a uma espécie de experiência bruta e directa, antes de conseguir raciocinar ou criar até uma narrativa sobre o que está a ver. Quem vier de lá [do lado dos vídeos] tem outro acesso, que é quase um acesso à verdade da performance, mas a verdade da performance está aqui e não está ali", remata.

'I Am Here', João Fiadeiro
© António Jorge Silva'I Am Here'

Da galeria para o palco, esta passagem de João Fiadeiro pelo MAC/CCB também acontece na Black Box e no Pequeno Auditório. Dar Corpo é o programa de peças que complementa a exposição, entre os dias 21 de Junho e 6 de Julho. Além de solos desempenhados por artistas mais jovens, o coreógrafo sobe ao palco nos dias 5 e 6 de Julho, às 21.00, para voltar a interpretar I Am Here.

Praça do Império (Belém). Ter-Dom 10.00-18.30. Até 22 Set. 7€ (para residentes em Portugal)

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