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Após uma interrupção de seis meses, o teatro de revista voltou ao Maria Vitória a 9 de Setembro. Uma companhia que vai resistindo ao passar dos tempos, muito graças à persistência do produtor Hélder Freire Costa, que trabalhou e aprendeu com os melhores, de Giuseppe Bastos a Vasco Morgado. É ele o último destes moicanos, um produtor que, em nome próprio, continua firme ao leme da companhia de teatro de revista, resistindo a crises e pandemias.
Fundado em 1922, o Maria Vitória foi o primeiro dos teatros criados no recinto do Parque Mayer, outrora conhecido como “a Broadway portuguesa”. A ele juntaram-se pouco tempo depois o Teatro ABC, demolido em 2015 para dar lugar a um parque de estacionamento, e mais dois espaços que regressaram ou vão regressar: o Capitólio, renascido em 2017 com programação a cargo da Sons em Trânsito; e o Teatro Variedades, desactivado no final dos anos 90, mas actualmente em obras, resultado de um concurso público de ideias, do qual se sagrou vencedor o arquitecto Manuel Aires Mateus, em 2008. Em Fevereiro deste ano, o município anunciou o lançamento de um concurso internacional para a “reabilitação, requalificação e exploração do Parque Mayer”, num documento que estabelece as linhas gerais para a implementação da Zona de Emissões Reduzidas no eixo Avenida-Baixa-Chiado. No meio de todas as mudanças está o histórico Maria Vitória, a aguardar novidades sobre o futuro.
“Há um projecto para aqui [Maria Vitória], ultimamente falam de um teatro, com salas de ensaio. Para fazerem isso tudo têm de deitar o teatro abaixo. Eu acho bem, mas para onde é que a gente vai?”, pergunta Hélder Freire Costa, enquanto nos revela que em 2010 António Costa prometia que a companhia do Maria Vitória seria deslocada para o Teatro Variedades. Mas identifica dois problemas no projecto aprovado para o teatro vizinho. “Agora viemos a saber que o Variedades fica sem teia, que é fundamental para a revista. O espaço para cima tem de ser igual ao espaço de baixo, para engolir os cenários. O Maria Vitória é pequenino, nunca devia ser para a revista, mas tem uma teia. E não se pode estar a deitar abaixo teatros com 800 ou 900 lugares para ficarem com 200 ou 300, porque não tem rentabilidade. É rentável pondo preços elevadíssimos, mas já hoje o público tem dificuldade de ir ao teatro, se elevam os preços então é que não vêm mesmo”, defende. “Não vai ser comigo que isto vai abaixo, não vou ficar para a história como o tipo que acabou com o histórico Teatro Maria Vitória, tendo possibilidade de fazer de outra maneira”, defende convicto.
Cronologia de um resistente
Pare, Escute… e Ria! é o último espectáculo produzido por Hélder Freire Costa, que regressou à cena no Teatro Maria Vitória após meio ano de paragem. Às quintas, sextas, sábados e domingos, ainda há revista à portuguesa em permanência em Lisboa, graças à persistência deste resistente do Parque Mayer, um produtor que chegou ao mundo do espectáculo, vindo de um banco, nos anos 60. “Eu era empregado bancário, tinha 23 anos e nessa idade queremos é paródia. Eu e uns amigos tínhamos uma comissão e realizávamos bailes pela noite fora. Por via disso, chegava ao banco tarde e um dia ao chegar tinha ordem de despedimento”, lembra. Acabou por responder a um anúncio de emprego publicado no Diário de Notícias que pedia um “empregado de escritório, com prática em contabilidade. Passados 15 dias tornou-se secretário do produtor Giuseppe Bastos e passou a ser a sua sombra. “Eu vim de passagem, foi um emprego que arranjei. Eu entendia que o teatro não era futuro, tinha de procurar um banco ou uma empresa que me desse estabilidade, mas foram passando os anos”.
A 11 de Abril de 1975, o seu mentor morreu. “Estávamos com um êxito enorme, a primeira revista livre após o 25 de Abril, chamava-se Até Parece Mentira”, conta Freire Costa, que recorda a forma como a companhia se reuniu em seu redor, para que continuasse o trabalho de Giuseppe. Para ele era na altura impensável dirigir o Maria Vitória, mas a companhia assegurou que o ajudaria nesta nova missão. Em Outubro desse ano, produziu a revista Força, Força, Camaradas. E nunca mais parou. “No meu pensamento estava sempre a hipótese de me ir embora. Mas eu sou o homem das crises. Passava um ano, dois anos, depois acontecia uma crise e não podia deixar o teatro. Seria um acto de cobardia”, diz. Depois de ter ficado com o menino nos braços em 1975, ainda assistiu ao terrível incêndio que destruiu o Maria Vitória em 1986 (passaram uns tempos no Maria Matos), viveu as dificuldades de duas intervenções do FMI em Portugal e agora a pandemia. “Caiu-me como uma bomba em cima. O teatro ficou fechado durante seis meses, com despesas diárias e sem um tostão de receita. Regressámos no dia 9 de Setembro com muita dificuldade. Nas cadeiras da frente ninguém se pode sentar, nas outras é uma aqui outra acolá. Estão a vir poucos, mas se calhar mais do que aos outros lados a pagar bilhete. É um contributo do público de homenagem ao Teatro Maria Vitória que, dentro da gravidade da situação no país, pelo menos teve a ousadia de divertir o público. E esta revista é muito divertida. Por exemplo, o Salgado é o Miguel Dias na prisão a tratar o guarda como se fosse o empregado do hotel”, conta divertido. E dá uma lição do que é a verdadeira revista à portuguesa: “O teatro de revista é uma manta de retalhos. Tem um roteiro e cada número tem roupa própria, texto próprio e um corte com a cortina. É um espectáculo de actualidade, é diferente de uma comédia ou de uma comédia musical, que é uma história com início, meio e fim. Na revista cada número é um fragmento e para ter sucesso tem de ter crítica política e social”. Tanto que antes do 25 de Abril era preciso alguma ginástica para contornar a censura: “Hoje pode-se dizer tudo como os malucos, mas nessa altura tudo era controlado. Curiosamente, como não pagavam [a PIDE e afins], vinham ao teatro gratuitamente, mas tinham de apresentar um cartão à entrada, logo o porteiro avisava que eles estavam aí.”
O passado já lá vai, mas e o futuro? Haverá um depois de Hélder Freire Costa? “Tenho a certeza que sim. Tenho visto que há uma série de artistas que andam por aí que, se não houver Maria Vitória, eles agarram e fazem revista”.
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