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“O que é bom para alavancar vendas é também a ruína de muitos livros”

Um ano de controvérsias no Goodreads foi o suficiente para se pôr em causa o futuro das críticas de livros feitas por consumidores. Quisemos saber o que acontece no mercado português.

Raquel Dias da Silva
Jornalista, Time Out Lisboa
livros
DR
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Este artigo foi originalmente publicado na revista Time Out Lisboa, edição 669 — Primavera 2024.

Estávamos em 2007 quando o Goodreads nasceu e se tornou muito mais fácil encontrar recomendações de livros. Comprada pela Amazon em 2013, a plataforma – que permite organizar as nossas estantes e partilhar opiniões sobre as leituras que fazemos – é hoje das mais utilizadas por leitores de todo o mundo (são pelo menos 100 milhões). Mas é também, e cada vez mais, uma fonte de controvérsias, da infra-estrutura tecnológica ultrapassada ao chamado review bombing, que consiste em “bombardear” obras com classificações baixas e críticas negativas. Se isso é suficiente para ditar o seu fim, ainda é incerto. Apesar da especulação sobre o futuro das críticas dos consumidores e do surgimento de alternativas a manter debaixo de olho (como o independente Storygraph, que teve um pico de registos em Janeiro, depois de um ano particularmente difícil para o líder de mercado), a indústria parece continuar a não ter dúvidas sobre o poder do Goodreads de fazer ou desfazer autores.

“Enquanto autora [da Suma de Letras] e editora [da Aurora], as críticas dos consumidores são, por um lado, muito interessantes como passa-a-palavra; e, por outro, um pau de dois bicos. O que é bom para alavancar vendas é também a ruína de muitos livros”, diz Helena Magalhães, denunciando a “falta de ética” que grassa em plataformas do género e “a gestão de danos que não conseguem controlar”. Nomeia, por exemplo, o que aconteceu com Elizabeth Gilbert no Verão de 2023. Depois de ter sido “bombardeada” por classificações de uma estrela um ano antes da publicação do seu novo romance, a autora – que Helena promove no seu clube do livro digital – teve de adiar o lançamento indefinidamente. O cenário da história, a Rússia dos anos 1930, terá sido o problema, à luz da guerra na Ucrânia. Mas não é caso único. Em Dezembro desse mesmo ano, soube-se que Cait Corrain, uma autora por estrear, criou várias contas falsas para prejudicar as suas supostas rivais.

Em Portugal, não se conhecem exemplos de assédio direccionado ou não são tão flagrantes, mas Pedro Sobral, administrador do grupo LeYa e presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), relembra que a crítica sempre foi “relevantíssima” e também sempre houve más críticas por uma questão “mais pessoal do que propriamente literária”. Das boas, algumas seriam com certeza “encomendadas por amiguismos”. “O que mudou foi o volume de pessoas que o fazem”, explica, “porque passámos de uma pequena elite crítica de livros, que só tinha os jornais, a rádio e a televisão para o fazer, para milhões de pessoas, graças a todas as ferramentas que qualquer um pode utilizar.” Há efeitos negativos, como críticas “mais personalistas”, mas também os há positivos, como a democratização da leitura e a acessibilidade da informação, que também beneficia os editores: “Nos anos 80, se queríamos saber o que se estava a ler lá fora, tínhamos de ir a feiras, comprar jornais estrangeiros ou telefonar a alguém.”

A sabedoria das multidões ou o faroeste

Foi criado a pensar nos leitores, mas hoje em dia o Goodreads também é ferramenta para quem escreve e quem edita. Os primeiros querem dar-se a conhecer, os segundos saber o que tem potencial para vender que nem pãezinhos quentes. Helena Magalhães, por exemplo. Apesar de saber que as cópias avançadas ainda não são comercialmente relevantes em Portugal, ao contrário do que acontece nos EUA e no Reino Unido, foi a primeira autora portuguesa a enviar uma edição especial a jornalistas e influencers: A Devastação chegou-nos em Maio de 2023, com um autocolante a dizer “cópia antecipada” e um visual muito diferente daquele com que foi publicado um mês depois. E, apesar de fazer questão de manter uma distância saudável de classificações e críticas públicas, está muito atenta e é das figuras literárias que mais interage com o discurso na Internet, sobretudo se a identificarem nas publicações. O seu primeiro livro, Raparigas Como Nós, tem 1924 classificações na plataforma e, ainda que pareça pouco, está acima da média.

“Uma edição portuguesa acrescenta 300 a 400 ratings”, revela Rodrigo Manhita, editor e director criativo da Secret Society. “O Goodreads serve, sobretudo, para medir o sucesso internacional de um livro [já publicado noutras línguas].” Razão porque Saramago, amplamente traduzido, é provavelmente o autor nacional com mais engagement: O Ensaio Sobre a Cegueira tem mais de 289 mil ratings. Já o Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, igualmente disseminado, não chega aos 30 mil. E, entre contemporâneos, mesmo que de renome, o valor desce a pique. O Retorno, de Dulce Maria Cardoso, é a obra mais classificada da autora na plataforma e tem pouco mais de 3800 ratings. Para Bárbara Bulhosa, directora da Tinta-da-China, que publica Dulce, as opiniões dos leitores são sempre as mais importantes e é um orgulho quando há muito burburinho, mas as escolhas editoriais “não são regidas por esse tipo de critério”. O que, sabemos agora, é uma excepção.

Rodrigo, que se tornou editor aos 19 anos (tem agora 20), usa o Goodreads para todas as contratações que faz. “É uma base de dados e, quando recebemos um manuscrito, a primeira coisa que fazemos é ir lá.” É uma maneira de perceber se o autor tem mais livros, se já foi traduzido, a estética das diferentes edições e, claro, os ratings. “Nunca olho para o número de estrelas [pontuação média], mas a quantidade de ratings é um indicador de performance”, assegura. “Para mim [no caso de potenciais traduções], os 50 mil é o mínimo. Mas, atenção, nem sempre é o que nos leva a contratar.” Um Namorado Para Levar, Please!, de Sher Lee, só tinha 5 mil ratings quando decidiu que teria potencial de penetração no mercado português. “Uma coisa às vezes não tem a ver com a outra”, diz, ciente da “bolha das editoras, das pessoas que falam sobre livros e dos bookfluencers”. “Quem dita os verdadeiros best-sellers são os leitores ocasionais, que muitas vezes não estão online.” Mas as críticas dos consumidores e as plataformas onde são rainhas estão longe de ser inócuas.

Sérgio Alves, que passou de influenciado a influencer em menos de um ano, é utilizador assíduo do Goodreads, que usa para fazer tracking ao que lê e para descobrir novas obras, e admite não comprar livros que lá tenham menos de 3.4 estrelas. “Desconfio que a obra não é tão interessante ou bem redigida”, justifica Sérgio (@itsergioalvesbooks), que tem mais de 10 mil seguidores no Instagram e 40 mil no TikTok. “Vejo sempre as classificações para saber se vale a pena o investimento. Pode haver surpresas, mas são importantes porque reflectem a notoriedade e validação que outros leitores dão. Quantas vezes já se ouviu ‘ainda não li nada do autor, mas já ouvi falar bem’?”

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