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O que é ser mulher agora, dez anos depois de ‘Tudo Sobre a Minha Mãe’?

Há muito que Daniel Gorjão andava com este espectáculo na cabeça. O encenador cumpre o “sonho de anos” de mostrar um ‘Tudo Sobre a Minha Mãe’ fiel, mas contemporâneo. Até 22 de Janeiro no São Luiz, em Lisboa.

Joana Moreira
Escrito por
Joana Moreira
Jornalista
peça, tudo sobre a minha mãe, teatro, palco
Estelle Valente
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Duas mulheres, prostradas, observam quadros de Picasso. “São falsos”, diz uma. “Não são falsificações, são imitações”, corrige-a a outra. Na adaptação teatral do filme de Pedro Almodóvar Tudo Sobre a Minha Mãe (1999), as mulheres que o realizador espanhol idealizou sobem a palco sem falsificações, só “à procura da sua verdade”. Ou assim espera o encenador Daniel Gorjão. "Estamos sempre a ver a verdade daquela personagem, que para mim é daquele actor naquele momento. A personagem não é uma coisa que me interesse. [Interessa-me] como é que um actor ou actriz se relaciona com este texto. Onde é que ele lhe toca para se conseguir expor”, explica após um ensaio. “No teatro, o ofício do actor é expor-se intimamente. Eu não quero ser actor porque tenho vergonha”.

Mas já quis. Foi, aliás, nos tempos em que Gorjão trabalhava enquanto actor no Teatro Politeama – de onde, curiosamente, acaba de sair de cartaz Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos, musical com base noutra película do mesmo realizador – que surgiu o seu desejo de criar este espectáculo. “Houve uma altura em que o Filipe La Féria queria levar isto à cena e eu queria fazer o filho [Esteban]. Nunca aconteceu”, sorri. Guardou a vontade. Só agora o co-fundador do Teatro do Vão e curador das artes performativas na RTP2 conseguiu concretizar o “sonho de anos”, numa co-produção com o Teatro Municipal do Porto e o São Luiz Teatro Municipal. Tudo Sobre a Minha Mãe estreia-se a 11 de Janeiro no teatro lisboeta e ali fica até dia 22. “Foi um processo muito, muito longo até conseguir ter os direitos e até arranjar um teatro parceiro para conseguir fazer este espectáculo”, revela. 

Tudo sobre a minha mãe
Estelle Valente

Esta adaptação do aclamado filme de Almodóvar é assinada pelo dramaturgo australiano Samuel Adamson e mostrou-se pela primeira vez em 2007 no Old Vic Theatre, em Londres, com encenação do irlandês Tom Cairns. Em Lisboa, a peça assume uma representação fiel da obra-consagração do realizador (valeu-lhe o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro), que conta a história de Manuela (interpretada por Sílvia Filipe), uma enfermeira, mãe solteira, que assiste à morte do filho, Esteban (João Sá Nogueira), no dia em que este completaria 17 anos. Manuela parte então para Barcelona, cidade da sua juventude, à procura do pai do filho. Nessa viagem de reencontro com o passado cruza-se com Agrado, uma velha amiga transexual; conhece Rosa, uma freira que se descobre grávida; e começa a trabalhar como assistente de Human Rojo, uma conhecida actriz de teatro que Esteban tenta alcançar antes de morrer tragicamente. 

Num jogo permanente de referências entre o teatro e o cinema, ou não fosse já a obra cinematográfica pejada delas – como a recorrente menção a Um Eléctrico Chamado Desejo ou a duríssima cena do atropelamento de Esteban, num decalque em tudo idêntico ao de Noite de Estreia (1977), de John Cassavetes, filme que também lida com uma morte acidental às portas de um teatro –, destaca-se o que há de diferente. Desde logo, a abordagem à exuberância carnavalesca da linguagem visual de Almodóvar, aqui contida no cenário. O chão branco deixa brilhar o guarda-roupa, uma explosão garrida de cor, com figurinos do atelier Jaqueline Roxo e styling de Federico Rudari. “Não é naturalista. Elas podiam ter saído de uma passadeira vermelha. São vestidos que ocupam espaço. São coisas volumosas. Não são realistas”, confirma o encenador. À boa maneira cíclica da moda, a arte de misturar cores berrantes em blocos até voltou às passarelas no último Verão, mas no universo do realizador espanhol a cor não é tendência, é estilo que marca toda a sua filmografia. Em palco, cada personagem tem uma cor única. Verde, vermelho, amarelo. A narrativa pinta-se de quantas as actrizes compõem um elenco, que aqui inclui André Patrício, Catarina Wallenstein, Filipa Leão, Filipa Matta, Gaya de Medeiros, João Candeias Luís, João Sá Nogueira, Maria João Luís, Maria João Vicente, Sílvia Filipe e Teresa Tavares (que partilha com Daniel Gorjão a direcção do Teatro do Vão).

Tudo sobre a minha mãe
Estelle Valente

Daniel Gorjão não tem dúvidas de que Tudo Sobre a Minha Mãe é “um espectáculo sobre o feminino, sobre a intimidade, sobre o amor incondicional”. Um espectáculo que pretende reflectir sobre “o que é ser mulher (periférica ou não, racializada ou não, cis ou transgénero)”, lê-se na sinopse. Se no final dos anos 90 Almodóvar propunha a sua família para o século XXI, que nasce num conceito alargado, cheio de figuras de substituição, em que o pai se descobre mulher, Gorjão propõe-se fazer a sua versão dando palco a temas como a identidade de género e a orientação sexual, colocando em cena intérpretes e corpos queer. “Ser autêntica custa caro”, chega a dizer Agrado, personagem interpretada pela artista trans brasileira Gaya de Medeiros. “Quando isto se estreou no Old Vic, há mais de dez anos, era um homem que fazia a Agrado. No filme é uma mulher cis que faz a personagem. Neste momento faz sentido voltar a este tema, voltar a esta peça, para a pôr à luz do nosso tempo. Passaram só dez anos, mas mudou muito a discussão sobre este tema”, sublinha o encenador. “Esta história podia acontecer com uma pessoa que não era trans. E ele [Almodóvar] tenta ir buscar pessoas que são diferentes para contar as suas histórias. Acho isso notável. Esse lado do afecto composto pela não normatividade, por pessoas não normativas. Acho que ele foi muito pioneiro ao mostrar isso em 99.”

Voltemos às duas mulheres e ao seu olhar sobre os quadros de Picasso. “É o mais fácil de imitar e mais difícil de vender”, lamentam. Daniel Gorjão não pretende imitar Almodóvar, mas antes prestar-lhe homenagem, tanto que, pese embora Tudo Sobre a Minha Mãe seja o seu filme favorito do cineasta, optou por não rever a obra antes de começar a trabalhar sobre a peça. “Não queria estar influenciado. O cinema é o cinema, e o teatro é outro lugar para as personagens existirem de outra forma.” Por enquanto, existirão no São Luiz. Depois, seguem-se apresentações no Teatro Municipal do Porto – Campo Alegre, de 27 a 29 de Janeiro.

São Luiz Teatro Municipal. 11-22 Jan. Qua-Sáb 20.00, Dom 17.30. 12-15€.

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