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O que faz um curador? Em Alcântara, os vizinhos foram descobrir

Um projecto do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian pôs, durante meses, um grupo de pessoas a aprender o que é, afinal, isso da curadoria de arte. Agora, mostram-no numa exposição.

Joana Moreira
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Joana Moreira
Jornalista
CAM
Francisco Romão Pereira
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Quem quer ser curador? Não foi exactamente esta a pergunta, mas quase. O Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian e a Biblioteca de Alcântara lançaram um desafio aos residentes e vizinhos da freguesia: sair do papel de espectador e ocupar o lugar de curador. O resultado está na exposição "Entre Olhares, Encontros (in)comuns", que se mostra na Biblioteca de Alcântara até 31 de Março. 

Um grupo de pessoas, entre os 18 e os 76 anos, com origens e percursos de vida diversos, mergulhou no processo que envolve a criação de uma exposição, da curadoria à produção da folha de sala. "Há coisas que as pessoas não se lembram. Nós fomos obrigados a lembrar-nos da segurança ou das condições atmosféricas de uma sala. É diferente expor um vídeo ou expor esta cama", aponta Carlota Melo, 53 anos. Alfacinha de gema, “da área da banca” e sem qualquer passado ligado às artes, Carlota não hesitou em candidatar-se ao projecto participativo, que pretende ser o primeiro de muitos da fundação. “Sou uma curiosa. Não sou uma estudiosa, não sou uma investidora. Vou só ver. E à medida que vou ficando com mais anos a minha curiosidade aumenta por aquilo que é diverso", diz. "Isso enriquece-me, traz-me alegria". Até porque "toda a gente pode ver, sentir, experienciar”. 

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Francisco Romão Pereira

Ao longo de seis meses, em sessões quinzenais, aprendeu sobre museografia, montagem e design, contactou com curadores. Mas, antes de tudo, viu exposições. "Não só com o olhar de quem vai ver a peça, mas ver como é que a peça está colocada, como é que está iluminada, que informação é que ela tem, que diálogos é que se estabelecem pela proximidade ou não das peças umas com as outras", diz Susana Gomes da Silva, do Serviço Educativo do CAM e uma das coordenadoras do projecto. "Foi preciso desconstruir um bocadinho este pedestal onde estava o lugar do curador para percebermos que o que era interessante neste nosso projecto era assumirmos este lado amador, informado, obviamente, e poder com isso ter um olhar muito refrescante sobre as peças da colecção", diz a responsável. 

"Começámos por perceber, dentro da diversidade, os pontos comuns", explica. Para chegar às 31 obras escolhidas para a mostra – que inclui esculturas, instalações, fotografias, serigrafias, desenhos e livros de artista – foi necessário dialogar, chegar a um consenso, mas também enfrentar frustrações. “Tivemos de entender esse lado, esse desafio que um curador tem", recorda Carlota. "O CAM tem um acervo enorme. Nós queríamos trazer os Amadeo de Souza Cardoso, pinturas enormes…" A coordenadora contrapõe: "Tinha-os avisado que muito provavelmente havia um conjunto de obras que tinham restrições, seja por segurança, seja pelas condições de conservação ou muitas das vezes por questão de acessibilidade também”. E continua: “Neste momento, por termos o edifício em obras, algumas reservas estavam completamente fechadas e portanto as peças que estivessem nestas reservas não eram acessíveis. Tínhamos outras que estavam embaladas e que vão para exposições em breve… Todos eles argumentos normais que num pedido de obras acontecem."

CAM
Francisco Romão PereiraCarlota e Constanza

Nesse equilíbrio entre o desejado e o possível, houve margem para trazer à biblioteca de Alcântara Plaza de Mayo, Buenos Aires e Hotel dos Jornalistas, Saravejo (2009), obras de Susana Gaudêncio. "O que mais me impacta nesta obra é que a artista consegue traçar uma coisa que é invisível”, aponta outra das participantes. Constanza Solórzano, 34 anos, estudante colombiana a viver em Lisboa há um ano e meio, vê nas obras da artista portuguesa “uma história de dor que faz com que as pessoas se encontrem. Mas esses encontros são muito efémeros”. Nos quadros desenham-se linhas que se sobrepõem. "O que ela consegue trazer para nós vermos é o encontro de pessoas ao redor de desencontros. Estas mulheres que estavam a dar voltas nas praças estavam a se encontrar porque os seus filhos estavam desaparecidos pela ditadura”, explica. É bom para nos lembrarmos do que somos feitos. De dor e de encontros". 

No centro da mostra, no chão, destaca-se uma cama feita de cartas. A obra de Ana Vidigal foi uma das peças escolhidas por grande parte do grupo. "Não se via há muito tempo", atenta a responsável da Gulbenkian. A peça de chão é composta por cartas do pai da artista durante a Guerra Colonial. Se essa peça foi evidente, houve outras que foram verdadeiras descobertas de última hora. "Num dia, numa visita às reservas, descobrimos peças novas, vimos peças que ainda não tínhamos visto", diz Susana Gomes da Silva. Foi o caso da peça de Teresa Magalhães, Sem título (1971), ou os livros de artista, que se tornaram um ponto fulcral da exposição. Da colecção da Biblioteca de Arte da Gulbenkian saíram vários livros de artistas, entre diários, conjuntos de desenhos, ou registos de processos criativos, que ganharam uma sala no piso superior do edifício. 

CAM, Biblioteca Alcântara
Francisco Romão Pereira

Ver uma exposição erguida, tantos meses depois, é um orgulho, tanto para Constanza como para Carlota. Aprenderam que "menos é mais", e sobretudo a apurar a resposta à questão: "O que é que nós queremos dizer, e com o quê?". No final, confessa Carlota, "não nos conseguimos dissociar de expectadores. É essa a nossa formação, fomos sempre expectadores". 

Biblioteca de Alcântara. R. José Dias Coelho, 27-29 (Alcântara). Até 31 Mar. Ter-Sáb. 10.00-18.00 Entrada Livre. 

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