[title]
Passam das cinco da tarde e o The Warehouse, o armazém da Fundação Champalimaud na antiga Docapesca, está num alvoroço. Há cabos eléctricos e estruturas metálicas por todo o lado. Artistas, cientistas e comunicadores trabalham em conjunto para garantir que esta quinta-feira, 16 de Maio, é possível abrir as portas para a terceira edição do Metamersion, um ciclo de eventos de ciência, arte e tecnologia ao serviço da saúde humana e do conhecimento. Se soa misterioso, é porque o que se propõe é precisamente um espaço de exploração da mente, do corpo e da probabilidade do comportamento. Os resultados, esses, são, naturalmente, uma incógnita. As propostas – criativas, imersivas ou até interactivas – partem de investigações em curso, muitas das quais longe de estarem finalizadas, ou mesmo de chegarem a algum lado, pelo menos de forma óbvia. É uma das coisas que a ciência, a arte e a tecnologia têm em comum: estão em constante transformação e, quando nos chegam, são apenas resultado de um caminho entre tantos outros à escolha.
“Há muito tempo que estamos concentrados em compreender a base neural do comportamento [a forma como cérebro e corpo trabalham em conjunto para construir o eu e situá-lo no mundo]. Mas entretanto, por volta de 2019/2020, começámos a pensar no que seria uma forma significativa de desenvolver esse programa de neurociência básica numa direcção mais aplicada. Como é que podemos fazer com que a neurociência computacional [ou teórica, que estuda o sistema nervoso e as funções cerebrais através de modelos matemáticos e computacionais] tenha um impacto directo, por exemplo, na saúde? Quando somos fisicamente activos ou temos uma interacção social positiva, isso muda a nossa química, mas fá-lo através das interfaces naturais dos nossos sistemas sensoriais e motores. Acreditamos que, com investigação suficiente, seremos capazes de identificar novas formas de terapêutica realmente poderosas”, diz-nos o neurocientista Joe Paton, visivelmente entusiasmado com a oportunidade de convidar o público a participar, de certa forma, na conversa.
Coordenador do programa de Neurociências da Fundação Champalimaud, Joe Paton é também co-líder, juntamente com o neurologista e neurocientista John Krakauer, do futuro Centro de Terapêutica Digital, que deverá nascer no The Warehouse, para que investigadores, clínicos, engenheiros, criativos e empreendedores possam interagir para melhorar a saúde através do comportamento e da tecnologia, com um foco inicial nos distúrbios neurológicos e neuropsiquiátricos. O Metamersion, esclarece, é apenas uma peça dessa iniciativa mais ampla que a Fundação Champalimaud quer estabelecer. Mas é fundamental. “As pessoas têm acesso a informação sobre a importância da actividade física, da interacção social, de um sono e dieta de qualidade, mas mudar comportamentos é difícil.” E, como se costuma dizer, relembra-nos, uma imagem vale mais do que mil palavras. “Essa é uma das razões porque um evento cultural faz sentido, para expor directamente as pessoas às tecnologias [que queremos usar para encontrar novas soluções], em vez de tentarmos explicar e corrermos o risco de as perder em jargão técnico.”
O lugar onde a arte se junta à ciência e à tecnologia
Um jogo de inteligência artificial que estimula o movimento e tem potencial para melhorar o nosso humor. Uma simulação capaz de tornar experiências traumáticas numa experiência cinematográfica controlável. Uma colecção de músicas e curtas-metragens de animação para guiar os espectadores por diferentes estados mentais. Uma performance analógica para reflectir sobre como a tecnologia está a influenciar a forma como os coreógrafos percepcionam e criam movimento. Isto e muito mais haverá para ver e experimentar na Doca de Pedrouços F, entre 16 e 18 de Maio, todos os dias das 19.00 à meia-noite. Ao todo, são sete instalações imersivas, duas experiências de realidade virtual, um protótipo de terapêutica digital, duas peças audiovisuais, três performances, três concertos multimédia e três conversas redondas. Pelo meio, há ainda uma ementa criada pelos chefs Augusto e Filipe Camacho e bebidas por Flamingo Boémio.
“A programação é sempre muito experimental, mas as primeiras edições foram particularmente experimentais, e permitiram-nos perceber qual é a melhor forma de chegar ao público”, revela-nos Catarina Gonçalves-Pimentel, gestora do programa de terapêuticas digitais desde 2023. “Está tudo a falar de IA, do ChatGPT, destes grandes modelos linguísticos. São questões que estão na moda, neste exacto momento, e o Metamersion é a nossa forma de contribuirmos para a conversa e de tentarmos simplificar, ou explicar um pouco melhor o que são estas tecnologias supostamente muito complicadas. E é também uma tentativa de abordar eventuais preocupações.” Como, por exemplo, os desafios éticos da utilização de inteligência artificial (IA), a temática em discussão na mesa redonda que se realiza a 18 de Maio, pelas 19.00. “Existem formas de usar IA, no contexto da prática clínica, que acreditamos poderem melhorar a experiência do paciente e, esperamos, os resultados”, acrescenta Paton, “mas, mais uma vez, é preciso testar e avaliar. Queremos que seja seguro.”
Onde é que as fronteiras entre a experiência humana – largamente contaminada pela arte e a cultura –, a IA generativa e a tecnologia de ponta se encontram? Talvez seja esta a grande questão. E, curiosamente, ao contrário do que possamos imaginar, é possível reflectir sobre ela de uma forma analógica. Quem o diz agora não é nenhum dos cientistas, mas uma dupla de artistas e coreógrafos. “Na nossa proposta, a única tecnologia é o nosso corpo e o do espectador”, garante Vítor Roriz, que co-assina a peça com Sofia Dias. “O que nos interessa é a reflexão sobre como a tecnologia altera a nossa percepção e a nossa fisiologia, porque sabemos que, ao longo da história, houve um conjunto de revoluções tecnológicas que vieram alterar a relação que mantemos com outras pessoas e com o que nos rodeia, e até a forma como percepcionamos a realidade.”
Em residência na Fundação Champalimaud, no âmbito da iniciativa Bridges to the Unknown – Crossing Art with Science, Sofia Dias e Vítor Roriz perguntaram-se se seria possível traduzir para a coreografia alguns dos princípios subjacentes à investigação em realidade virtual, inteligência artificial e imersão. Daí nasceu All Around You, uma performance guiada, para um espectador de cada vez, que apela à participação activa. “Temos estado em contacto com os investigadores principais das neurociências e até de algumas pessoas de outras áreas, nomeadamente da psicoterapia, e tem sido muito rico, porque nos temos encontrado nesta vontade de perceber como é que o ser humano funciona, nós de uma forma, eles de outra”, partilha Sofia. “Quando diferentes especialistas se juntam, há uma série de questões que surgem e com as quais somos confrontados, e isso abre imensas possibilidades de pesquisa e de experimentação. E de falhanço, porque também faz parte e nós, pessoalmente, estamos sempre a reivindicar mais espaço para apresentações informais, para coisas inacabadas.”
Com entrada livre, salvo os concertos multimédia (7€/cada), o Metamersion é de acesso gratuito, mas requer reserva de bilhete online. O programa completo pode ser descarregado a partir do site da Fundação Champalimaud.
The Warehouse, Doca de Pedrouços F. 16-18 Mai, Qui-Sáb 19.00-00.00. Grátis, mediante inscrição (salvo os concertos, que custam 7€)