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Ninguém consegue passar indiferente pelo belíssimo edifício da Auto-Palace, ali já perto do Rato, na Rua Alexandre Herculano. Esta garage é um dos raros exemplares lisboetas da arquitectura do ferro e do vidro, como se nota pela elegante fachada com três arcos que permitem olhar para o interior. Por cima, um frontão de azulejos Arte Nova onde se destaca o nome: Auto-Palace.
No edifício original, dos projectistas Vieillard e Touzet, o interior da garage desenvolvia-se a toda a largura do bloco central da fachada, numa nave única com uns incríveis 17 metros de altura, sustentada por elegantes vigamentos de ferro laminado sobre os quais assentam a cobertura e uma generosa clarabóia a todo o comprimento do espaço. Não é exagero chamar-lhe palácio – e os vitrais lá estão, um em cada extremo do edifício, a celebrar, pela arte, “o mais rápido, confortável e mais elegante dos veículos que o homem tem inventado até ao presente”, como diz o jornal O Século, a 5 de Julho de 1907, por altura da inauguração.
Praticamente invisíveis da rua, é no interior que os vitrais se revelam, atravessados pela luz do dia. Aqui podemos observar, a menos de um palmo, aquilo que faz o esplendor de um vitral: a luminosidade, a translucidez, a opacidade, o texturado do vidro; neste caso, tudo isso e o azul e o amarelo-ouro vibrantes usados para colorir as viaturas e destacá-las da paisagem de fundo.
Está a ver o azulão da frente do automóvel do vitral da foto? Pois o outro vitral tem um automóvel desportivo dos primeiros anos do século XX todo nessa cor, num desenho de traço extremamente dinâmico. E ao volante, o piloto usa aqueles óculos de protecção gigantes que mais fazem lembrar a viseira de um escafandro. Infelizmente, a sala onde se encontra foi transformada em armazém de peças, cheia de estantes que só permitem uma visão muito entrecortada do vitral. Nem é sequer possível fotografá-lo inteiro.
Os vitrais foram encomendados em 1907, para ornamentar o salão de leitura e o gabinete da direcção, ao pintor e mestre vitralista Cláudio Martins, grande responsável pela recuperação desta arte na Lisboa do início do século XX. No final dos anos 80, foram retirados para restauro e criação de réplicas de peças danificadas, num trabalho que levou um ano e custou quatro mil contos (uma fortuna à época).
Conta-nos a brochura Auto Palace, um século de vida, da Auto-Industrial, proprietária do edifício, que os vitrais terão inspirado Fernando Pessoa a criar o poema do seu heterónimo Álvaro de Campos “Ao volante do Chevrolet pela Estrada de Sintra”. Sendo certo que os vitrais de 1907 não podiam retratar Chevrolets (a marca só foi fundada em 1911), não é de excluir que em 1928, data do poema, a aura em torno desses glamorosos carros e a visão dos vitrais (onde até parece aparecer o Palácio de Sintra) possam ter inspirado o poeta. Verdade ou mito, é uma história bonita. Que só nos leva a desejar que as estantes de peças venham a ser retiradas daquela sala e que o vitral com o automóvel desportivo do início do século XX volte a poder ser admirado em todo o seu esplendor.
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