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‘O Segredo dos Mártires’: uma viagem etnográfica em banda desenhada

O que aconteceu à nau ‘Nossa Senhora dos Mártires’? A história é pouco conhecida, mas real. E é aos quadradinhos que Paulo Caetano e Jorge Mateus a desvendam. Falámos com os autores e com o investigador Filipe Castro.

Raquel Dias da Silva
Jornalista, Time Out Lisboa
O Segredo dos Mártires
© Jorge MateusO Segredo dos Mártires, de Jorge Mateus e Paulo Caetano
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Foi a 14 ou 15 de Setembro de 1606 – os historiadores não são unânimes – que, depois de ter resistido a uma viagem inóspita de oito meses, a Nossa Senhora dos Mártires acabou por sucumbir numa tempestade cruel, junto ao Forte de São Julião da Barra, em Oeiras. Mais de 200 pessoas morreram e o Tejo ficou tingido de pimenta-preta durante uma semana. Agora, Paulo Caetano e Jorge Mateus convidam-nos a subir a bordo e a conhecer as histórias por trás da história. Editada pela Iguana, a novela gráfica O Segredo dos Mártires tem lançamento marcado para 12 de Setembro, às 18.00, na Tinta nos Nervos.

“Sou amigo do Jorge há muitos anos e esta é a segunda vez que trabalhamos juntos numa banda desenhada. Já o tínhamos feito com Urso, que partiu de um livro que escrevi com o Miguel Brandão Pimenta sobre a extinção dos ursos-pardos em Portugal. E, talvez porque fui jornalista durante 37 anos, o género de banda desenhada de que gosto e aquela que de alguma forma é, hoje em dia, muito corrente, está precisamente ancorada na realidade”, diz-nos Paulo Caetano, que é realizador de seis documentários e duas séries documentais, e autor de duas dezenas de livros de Natureza e Etnografia, dos animais mais raros da fauna ibérica às tradições mais antigas da nossa nacionalidade.

O Segredo dos Mártires
© Jorge MateusIlustração do Forte de São Julião da Barra, em Oeiras, em 'O Segredo dos Mártires', de Jorge Mateus e Paulo Caetano

A vontade de recontar o naufrágio da Nossa Senhora dos Mártires surgiu, revela-nos Paulo, ainda durante a pandemia. Foi nessa altura que começou a fazer os primeiros contactos. Na verdade, já tinha entrevistado Francisco Alves no fim do século XX, para uma reportagem sobre naufrágios e descobertas arqueológicas subaquáticas, e contava com documentação sobre a nau portuguesa. “Voltei a mergulhar nos meus apontamentos e comecei a delinear o argumento tendo como limite aquilo que sabíamos ter acontecido. Sabíamos que a nau tinha partido da Índia carregada de pimenta, quem era o seu comandante e até os nomes de alguns tripulantes e passageiros mais ilustres.”

O que não se sabia – aquilo que só podemos imaginar – é tudo o que aconteceu durante os oito meses de viagem. Salvo a morte do vice-rei, de que há registo (terá morrido a bordo e sido enterrado perto dos Açores), e do resultado do naufrágio, tudo é mais ou menos uma incógnita. “A partir daí, decidi criar uma trama que remetesse para a época e fosse credível.” Em resumo, além de se contar a história real do malogrado naufrágio da nau, aborda-se também o suposto envolvimento amoroso entre o vice-rei das Índias e a rainha de Portugal, e um tesouro fabuloso que levaria a bordo e que, motivando a intriga, lhe custou a vida. Pelo meio, retrata-se a vida em alto mar, inclusive os eventuais confrontos com outros navios.

O Segredo dos Mártires
© Jorge MateusO Segredo dos Mártires, de Jorge Mateus e Paulo Caetano

“Contámos com a preciosa ajuda de dois dos investigadores que descobriram os destroços da nau nos anos 90, o Filipe Castro e a Catarina Garcia [que partilharam inclusive reconstruções da nau]. Depois foi preciso perceber que armas havia, que roupas se usavam, como é que se passava o tempo”, explica Paulo, que destaca ainda a colaboração de especialistas da Marinha Portuguesa, nomeadamente o comandante Alexandro Cartaxo e o capitão Augusto Salgado. “Tentámos ser o mais rigorosos possível e ficcionámos sempre com base no que poderia de facto ter acontecido. Mas sem sermos demasiado realistas e demasiado cinzentos”.

História, política, intriga, cor e luminosidade

Na hora de pôr mãos à obra, desenvolveu-se “uma forma singular para a construção do argumento”. Quem o diz é Jorge Mateus, que assina o desenho e co-assina o texto. Depois de Paulo ter criado um guião ancorado na História, Jorge criou “diversos episódios e situações” que, apesar de não serem factos reais, se inserem no contexto e conferem outra densidade à novela. “Por outro lado, pretendia mostrar, sem desvirtuar a narrativa, alguns aspectos da dura vida nas naus. A título de exemplo, a inclusão das conversas do velho com o grumete, que demonstram as diferenças de tratamento entre marinheiros e fidalgos”, partilha. “Outro exemplo é a menção à água de flor, que os fidalgos usavam como forma de suportar o cheiro nauseabundo com que se vivia nas naus.”

O Segredo dos Mártires
© Jorge MateusO Segredo dos Mártires, de Jorge Mateus e Paulo Caetano

Foi uma experiência muito dinâmica. Ainda que, espante-se, tenha sido tudo feito à distância, uma vez que Jorge está actualmente a viver em África. “A Internet reduz distâncias”, assegura. Além disso, o facto de há anos presenciar céus com “cores quase ‘impossíveis’” também o ajudou a seguir o caminho cromático que temos agora o prazer de apreciar. “Queria ver as páginas inundadas de cor e luminosidade.” Mesmo que, admite, provocando “o abandono quase total do traço”, o que espera revelar-se tão impactante para o leitor como a espessura psicológica das personagens. “Quando, por exemplo, o capitão Rolim surge pela primeira vez, é apenas uma figura relativamente austera. Ao longo da história vai-se descobrindo um capitão com mais dimensões, duro, pragmático, mas também afável.”

O Segredo dos Mártires
© Jorge MateusO Segredo dos Mártires, de Jorge Mateus e Paulo Caetano

Filipe Castro ainda não teve oportunidade de ver o resultado, mas não tem dúvidas da importância de promover o fascínio pela arqueologia subaquática, área na qual trabalha por absoluta paixão e que lhe permitiu, e à sua equipa, recuperar do fundo do estuário do Tejo uma parte da quilha da Nossa Senhora dos Mártires. “Havia um mergulhador chamado Carlos Martins que dizia haver ali o resto de um casco com pimenta, então no primeiro mês fizemos um reconhecimento do terreno. Depois de identificarmos o sítio com mais interesse arqueológico, traçámos um plano e começámos a escavar”, desvenda o investigador e arqueólogo subaquático. “Em 1998, fui para os EUA fazer o meu doutoramento e a minha tese foi precisamente sobre o naufrágio. Reconstruir formas de ser humano que hoje em dia seriam impensáveis, é para isso que a arqueologia serve.”

O Segredo dos Mártires
© Jorge MateusO Segredo dos Mártires, de Jorge Mateus e Paulo Caetano

Além de parte da quilha, conta-nos Filipe, encontraram-se instrumentos de navegação, astrolábios, compassos, pratos de porcelana, cerâmicas orientais e muitos outros artefactos, alguns dos quais fazem agora parte do espólio do Museu da Marinha. “Eram muitos artefactos”, assegura, antes de revelar que mais haveria. “A seguir ao naufrágio, foram lá pessoas buscar coisas. A Coroa também contratou uma empresa e diz-se até que, já nos anos 70, um americano se fartou de encontrar coisas. Acontece muitas vezes. Por exemplo, no século XVII deu-se um naufrágio na Praia da Consolação e mais tarde, creio que nos anos 50, uma menina encontrou uma estatueta de Jesus. O mesmo com o Astrolábio de Aveiro, que foi encontrado em 1994 por um homem que andava a passear na praia.”

O Segredo dos Mártires
© Jorge MateusO Segredo dos Mártires, de Jorge Mateus e Paulo Caetano

A costa portuguesa está cheia de História e de histórias. Mas muitas permanecem para sempre obscuras. Filipe denuncia a animosidade que diz persistir entre os arqueólogos subaquáticos em Portugal, “uma situação verdadeiramente trágica”. É por isso, lamenta, que para os portugueses o mar é apenas “uma coisa com peixe”. Restam pessoas como Paulo Caetano e Jorge Mateus, curiosas e determinadas e cheias de vontade de informar e entreter. 

“Eu estou num projecto no Quénia de escavação de um navio do Vasco da Gama e ninguém em Portugal quer saber. Eventualmente, há uma geração que vai ter de se reformar, porque as ditaduras – e o 25 de Abril foi só há 50 anos – criam uma aura à volta da informação como se fosse perigosa, e os portugueses não confiam uns nos outros, não gostam de fazer trabalhos de grupo e também não fazem perguntas. As grandes perguntas da filosofia são as da arqueologia: de onde é que vimos, para onde é que vamos, o que é podemos saber e o que é que devemos fazer”, diz. “Estou muito entusiasmado para o lançamento. A divulgação de ciência é mais importante do que a ciência. Porque a ciência, se só servir aos cientistas, faz Elon Musks. Se a democratizarmos, as pessoas vivem melhor.”

O Segredo dos Mártires, de Paulo Caetano e Jorge Mateus. Iguana. 160 pp. 18,45€

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