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O teatro musical está a crescer em Lisboa. Será que podemos vir a ter uma Broadway portuguesa?

Desde que La Féria começou a encenar musicais nos anos 90, o género tem vindo a ganhar espaço na cidade, especialmente nos últimos tempos. Mas terá Lisboa as condições para criar uma espécie de Broadway em Portugal?

Beatriz Magalhães
Escrito por
Beatriz Magalhães
Jornalista
Lara Martins em 'O Fantasma da Ópera'
© Giulia MarangoniLara Martins em 'O Fantasma da Ópera'
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Este artigo foi originalmente publicado na revista Time Out Lisboa, edição 671 — Outono de 2024

Há cerca de 2500 anos, na Grécia Antiga. Seria essa a resposta à pergunta: quando nasceu o teatro musical? E não é apenas o Google que o diz, são também historiadores que atribuem às performances daquela altura a origem do teatro musical como o conhecemos hoje. Mas é claro que muito mudou desde então. Depois dos gregos, vieram os romanos e, depois dos romanos, vieram a ópera e a opereta, seguidas da Broadway e do West End. Por lá, há musicais que estão em cena há décadas e o sucesso não parece arrefecer. A Portugal, chega, este ano, O Fantasma da Ópera, numa produção conjunta da Broadway e do West End. Não é o primeiro musical que vemos por cá (já vimos muitos, atenção), mas será que não vem tarde demais? Ou será que vem mesmo a tempo? As opiniões não se dividem muito e assentam no crescimento do teatro musical em Lisboa. Não há dúvidas que há público e profissionais interessados no género – mas a falta de investimento e de espaços e os custos elevados são obstáculos que ainda aparecem pelo caminho. Obstáculos ultrapassados, terá um dia Lisboa a Broadway portuguesa?

Em Portugal, o teatro de revista sempre foi o género teatral de mais relevo, e que muitos associavam ao teatro musical. Mas, apesar dos elementos em comum, os dois géneros são distintos e, ao contrário do teatro de revista, o musical não foi inicialmente recebido de braços abertos. Filipe La Féria tinha acabado de encenar o Passa Por Mim no Rossio (1992) quando estreou o seu primeiro musical, Maldita Cocaína (1993). “Era quase um tabu em Portugal. Diziam que o público só gostava de revista e o musical, nas experiências que fizeram, era sempre um grande fiasco comercial. E havia, de facto, um preconceito muito grande. Mas eu nunca acreditei nisso. Sempre acreditei que o musical podia ter o seu público e acertei”, recorda-nos o encenador. Desde então, o nome de La Féria tornou-se indissociável dos musicais, que têm casa no seu popular Teatro Politeama.

Filipe La Féria
© Mariana Valle LimaFilipe La Féria

Dores de crescimento

De facto, La Féria desbravou um caminho que levou a que o teatro musical ganhasse espaço no panorama cultural da cidade. Depois dele, muitos foram os dramaturgos e encenadores que começaram a pôr em pé adaptações de musicais internacionais ou produções próprias. E o género tem vindo, gradualmente, a ganhar terreno. “Começaram a surgir várias produtoras que perceberam o potencial e começaram a investir em musicais e, portanto, dado a receptividade do público e a adesão, compreende-se que cada vez haja mais”, diz-nos Diogo Infante, que já encenou no Teatro da Trindade peças como Chicago e Sonho de Uma Noite de Verão, realçando a panóplia de temas actuais que fazem parte do teatro musical. A actriz Sofia Escobar, que já participou em produções do West End, também tem assistido a “um crescimento muito grande, não só na qualidade das produções que se vão fazendo, mas também na visão do público. Isso é uma das coisas mais importantes e das que mais me causava preocupação, porque acho que nós temos a ideia de que o teatro musical é só Londres e Broadway”. 

Martim Galamba, um dos fundadores da Musical Theater Lisbon (MTL), que, ligada à Broadway, aposta na produção artística nacional e na formação da comunidade de teatro musical em Portugal, sublinha o papel da escola no crescimento deste mercado. “Acho que tem contribuído bastante para se perceber que o teatro musical pode ser algo bastante bom, especialmente com esta ligação única à Broadway que nós temos. Acho que, de facto, isso tem despertado muito interesse e as pessoas começam a ver cada vez mais que o teatro musical pode ser uma coisa de qualidade.” 

Diogo Infante
Fotografia: Manuel MansoDiogo Infante

E não é só o público que pede por mais musicais. Também o fazem muitos jovens actores, que ora tentam a sua sorte em audições abertas, ora enchem eventos, como o Broadway em Lisboa, dinamizado pela MTL, que inclui masterclasses e workshops. Uma das coisas que caracteriza o musical é o facto de englobar várias disciplinas artísticas – tanto se canta, como se representa e se dança – e, por isso, “para se conseguir ser um bom actor de teatro musical não é simples, porque é extremamente multifacetado e são precisas várias disciplinas. Quanto melhor se for em todas, melhor”, sublinha Sofia Escobar.

Em Lisboa, existem algumas escolas de teatro musical, mas para Henrique Feist, actor e encenador desde sempre ligado ao teatro musical, não é o suficiente, nem se equipara ao nível de formação que existe em Londres, Madrid, ou Barcelona. Ainda assim, Feist, que gere a estrutura de criação e produção de espectáculos ArtFeist, sediada no Auditório do Casino Estoril, nota “uma geração nova muitíssimo forte”. “Aquilo que eu acho que vai acabar por acontecer é que esta nova geração, por ela própria, vai fazer cumprir naturalmente um mercado ainda maior de teatro musical em Portugal. Vais acabar por ter tanta gente, que tem de haver forma de os acomodar. Ou seja, vai ficar óbvio e notório que o mercado tem de crescer.” 

7, Anos 70
© Alfredo MatosHenrique Feist em '7, Anos 70'

Nem espaço, nem dinheiro

Se por um lado, o género tem crescido em Portugal, por outro, continua a haver entraves que tornam esse processo mais demorado. Se olharmos para a cultura e para o teatro no país, há ainda lacunas por preencher. “Lisboa tem sempre um espectáculo musical em cena, mas se calhar o mesmo não acontece no Porto. E de certeza que há muitas cidades no país que, mesmo já tendo uma programação frequente, ou seja todas as sextas ou sábados abrem para um espectáculo, se calhar passam meses sem receber um espectáculo de teatro musical, ou anos. E, muitas vezes, são para crianças e não para o público em geral”, diz Ricardo Neves-Neves. O encenador, que no repertório conta com vários espectáculos que incluem música ao vivo e voz cantada, conclui que “o resultado disso é que não existe esse género de hábito e, não havendo o hábito, não existe a cultura, ou seja, o conhecimento mais aprofundado sobre o género.” 

Ricardo Neves-Neves
Francisco Romão Pereira / Time OutRicardo Neves-Neves

Estas questões não são alheias às medidas políticas no que toca à cultura em Portugal. “De um ponto de vista cultural, há obviamente um caminho ainda a fazer e que passa, quanto a mim, pelo poder político. Passa por nós encararmos a cultura como um aspecto fundamental na nossa existência e as disciplinas artísticas serem introduzidas de forma precoce na educação dos jovens, para que eles possam desenvolver uma capacidade e uma competência artística, intuitiva e criativa que lhes permita não só serem artistas, mas sobretudo desfrutar e usufruir daquilo que a arte tem para oferecer”, acredita Diogo Infante. Também Filipe La Féria vê a cultura “muito estagnada” – “dá-se sempre o dinheiro às mesmas pessoas. Seja um partido de direita, ou de esquerda no governo, é sempre a mesma conversa, não há diferença. Esta é a realidade e isso condena muito a geração que se tem de afirmar.”

Os elevados custos associados à concepção e produção de um musical, aliados à falta de condições financeiras para os poder suportar, acabam por também dificultar. Por muito que o investimento neste mercado seja feito por uma maioria de estruturas privadas, para produtoras como a ArtFeist, em que as receitas da bilheteira pagam tudo – desde a promoção e produção da peça aos técnicos e actores – torna-se impossível montar um espectáculo de grandes dimensões. “Tu tens O Fantasma da Ópera, Os Miseráveis, O Rei Leão, o Wicked em toda a parte do mundo. Porque é que não tens em Portugal? Por causa disto. Porque, só para montar o espectáculo, só para fazeres face a essas despesas que tiveste de montagem, tens que estar seis meses em cena. E não consegues isso em Portugal”, lamenta Henrique Feist, lembrando que, neste cenário, os bilhetes rondariam os 90€, o que, mais uma vez, seria um problema. Aliás, o encenador confessa que já estudou, em conjunto com o irmão, a possibilidade de trazer Os Miseráveis a Lisboa, mas os custos revelaram-se proibitivos.

The Phantom of the Opera
Francisco Romão Pereira / Time OutThe Phantom of the Opera

Depois, impõe-se ainda a falta de espaços que acolham musicais na cidade. Sem contar com o Politeama, com uma programação de teatro musical em permanência, nem todos os teatros cedem os seus palcos a este género. “No Teatro Nacional, era algo que eu gostava de ver. Acho que já estivemos mais longe, mas acho que faz todo o sentido, porque aliás um teatro nacional deve ser um teatro que sirva vários estilos, várias formas de arte e que não se feche apenas em teatro de autor, ou teatro de nicho”, partilha Martim Galamba da MTL. Para ele, esta questão é ainda mais relevante se pensarmos que “um teatro que não serve o público não está a servir o seu propósito, é um teatro que não evolui.”

As razões são várias. Ora falamos das condições físicas do espaço, visto que a maior parte das salas de teatro não estão equipadas da mesma forma que salas da Broadway ou do West End; ora falamos da programação de determinado teatro como impedimento. “Às vezes, o que nós sentimos é que os espectáculos que são seleccionados para as programações, são seleccionados pela sinopse e não pelo entusiasmo ou pelo ímpeto artístico da equipa. São sinopses muito urgentes e inquietantes, que é uma expressão que me irrita muito, mas que em termos artísticos não são muito entusiasmantes”, confessa Ricardo Neves-Neves. A duração das carreiras também torna fazer um musical um desafio, já que o trabalho técnico de som é demorado, bem como a preparação dos músicos. É exemplo disso o que acontece em The Swimming Pool Party, apresentada no Teatro Variedades, em Outubro, por Neves-Neves. Apesar de ser composta por apenas nove músicos, a orquestra tem de responder a uma dinâmica complexa, que precisa de tempo para ser trabalhada. 

The Swimming Pool Party
© Estelle Valente'The Swimming Pool Party'

No Porto, a situação não é melhor. Além de ter menos estruturas teatrais do que Lisboa, não tem nenhuma a apresentar longas temporadas de musicais, como acontece com o Politeama. Em 2007, a Câmara Municipal do Porto concessionou a exploração do Rivoli a La Féria, que lá permaneceu até 2010. Foi uma “experiência óptima”, mas curta. Segundo o encenador, apesar das boas escolas que existem no Porto, não há mercado para estes espectáculos, até porque o teatro continua a ser um meio um tanto “elitista” e habitado, em grande parte, pela “alta cultura”.

Fantasmas famosos a que preço?

E é neste cenário que nos chegam, de tempos a tempos, grandes musicais de renome internacional. Entre 15 e 27 de Outubro, é a vez de O Fantasma da Ópera, que conta com o elenco, figurinos e cenários da Broadway e do West End. “O nosso trabalho é criar conteúdos em Lisboa que possam valorizar o destino, que também é importante. Focamo-nos muito em Portugal, cada vez mais, como destino cultural e, para isso, os grandes eventos têm um papel fundamental”, defende Álvaro Covões, director-geral da promotora Everything is New, que traz este espetáculo a Portugal. O musical é apresentado no Sagres Campo Pequeno, escolha que se prende, em parte, com questões financeiras. “Nós tentamos escolher sempre a sala que se adequa mais ao espectáculo em si, mas há outra variável que também é relevante, que é a económica. Nós precisamos de uma determinada receita e, portanto, só podemos trabalhar com salas com determinadas lotações.” Havia também vontade de levar o espectáculo ao Porto, mas teriam sido necessárias pelo menos mais duas semanas de apresentação, o que não foi possível. 

MAMMA MIA!
© Brinkhoff/Mögenburg - LITTLESTARMAMMA MIA!

Para o presidente da UAU, Paulo Dias, os desafios são os mesmos. A promotora, que ao longo dos anos tem apresentado vários musicais, volta a trazer Mamma Mia! aos palcos portugueses em 2025. “Há alguns [musicais] que são mesmo difíceis de fazer, ou depois os bilhetes ficam tão caros que as pessoas não têm dinheiro para os comprar”, explica. O Mamma Mia!, por exemplo, tem uma equipa artística de 78 pessoas, o que se traduz em gastos avultados em viagens, hóteis ou taxas turísticas. Para justificar os custos de produção e gerar receita, o musical também é apresentado no Sagres Campo Pequeno. Os espaços podem não ser “os mais adequados”, mas é onde “é possível”. Contudo, para Paulo, que também nota o mercado a crescer, o futuro passa por escolher musicais totalmente feitos em Portugal.

Fátima
RITA CHANTREFátima

Em Novembro, Filipe La Féria estreia Fátima, uma ópera-rock inspirada na história dos três pastorinhos, que tanto tem de terreno como de divino. Em Abril de 2025, Martim Galamba avança que a MTL irá apresentar, no Teatro Variedades, uma adaptação de um musical da Broadway, falado e cantado em português. Já a UAU apresentará, no final de 2025 e no início de 2026, dois musicais produzidos por companhias portuguesas. Resta esperar para ver. Um dia, quem sabe, Lisboa seja tão musical quanto Londres ou Nova Iorque.

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