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Olga Roriz e a vida perdida das praças: “Cada vez nos fechamos mais nos nossos telemóveis”

A coreógrafa abre a sua companhia à comunidade com ‘A Hora em que Não Sabíamos Nada Uns dos Outros’, a turbulenta peça de Peter Handke. “É uma loucura”, conta Olga Roriz, antes da estreia no São Luiz. Uma tensão constante.

Hugo Torres
Escrito por
Hugo Torres
Director-adjunto, Time Out Portugal
A Hora em que Não Sabíamos Nada Uns dos Outros
Estelle ValenteA Hora em que Não Sabíamos Nada Uns dos Outros
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Peter Handke ainda não sonharia com o Prémio Nobel quando, em 1992, publicou e estreou A Hora em que Não Sabíamos Nada Uns dos Outros. Uma peça que originalmente tem 450 personagens e que, na mitologia do dramaturgo austríaco, resulta de um dia de observação a partir de uma esplanada de Muggia, comuna italiana de Trieste, em que as pequenas coisas que aconteciam na praça se tornaram significativas para Handke. Três décadas mais tarde, as praças mudaram. Já não são espaços de encontro com amigos, conhecidos, estranhos. Já não vamos para a praça acertar um negócio, comunicar, viver colectivamente. “Perdeu-se isso. Estamos com os nossos telemóveis e computadores, e aí é que encontramos as pessoas que queremos”, observa Olga Roriz, que vai revisitar a peça no São Luiz entre 12 e 21 de Maio. Para isso, teve de a actualizar por completo. “Eu não fiz esta encenação/coreografia inspirada na peça do Peter Handke, eu fiz a peça”, assegura.

“Há uma fisicalidade nas praças, hoje em dia, que nada tem a ver com a fisicalidade daquela altura”, diz a coreógrafa à Time Out, por telefone. Daí a necessidade de mudar, para que o público se possa reconhecer, tanto nos rostos que se cruzam em palco como na utilização calada, desconfiada, apartada deste espaço comum. Olga Roriz não precisa que lhe contem. Viveu as duas épocas. Sabe bem a diferença. Hoje, a nossa experiência de vida é infinitamente mais individualizada do que era em 1992. “Cada vez nos fechamos mais nos nossos auriculares, nos nossos telemóveis”, afirma. “Nem reparamos uns nos outros.” O título podia explicar-se por aí: “Não sabemos nada uns dos outros porque não comunicamos, não falamos”. Mas Olga admite uma outra explicação, uma matriz que não se alterou um milímetro nos últimos 30 anos: “Não sabemos nada uns dos outros porque somos muito complexos. Não sabemos de nós próprios. Quero acreditar que seja isso.”

Ou seja, apesar da frescura com que agora se procurou refazer a obra de Handke, A Hora em que Não Sabíamos Nada Uns dos Outros é atravessada por uma certa perenidade, que é o seu carácter humano. Também por isso é um poço (fonte?) de diversidade – de género, étnica, cultural. “Esta praça que eu acabei por criar é em vários sítios. Ela tanto está numa grande metrópole como depois está numa cidade muito mais pequena, ou até pode estar numa vila, ou numa cultura muito mais longínqua do que a minha, ocidental. Eu acho que viaja. Não é uma só praça numa só cidade, num só país, numa só cultura”, adianta. “Não posso dizer que esta é uma praça de 2023, seja em Nova Iorque, Lisboa, Marraquexe, onde for. Ela tem um tempo um bocadinho como a própria peça, que é um bocado intemporal.” Se o público nem sempre se situar, não tem mal. Há um lado de descoberta – de utopias, distopias, banalidades – que é importante. “É viajar na nossa imaginação.”

A Hora em que Não Sabíamos Nada Uns dos Outros
Estelle ValenteA Hora em que Não Sabíamos Nada Uns dos Outros

Esta versão não tem 450 pessoas em palco, como pretenderia o autor. Tem quase 30 – sete bailarinos (António Bollaño, Dinis Duarte, Gaya de Medeiros, Marta Jardim, Marta Lobato Faria, Roge Costa, Yonel Serrano) e 21 amadores, que no fundo são o motivo pelo qual Olga Roriz se empenhou neste projecto. “Eu queria fazer uma peça com a comunidade”, recorda. “E surgiu-me logo: ah, aquela peça do Peter Handke que eu nunca poderei fazer se não tiver a comunidade! Porque não temos hipótese [de reunir um elenco tão extenso só com profissionais].” Em todas as cidades será diferente. “Vai ser uma experiência. Porque já temos muitos espectáculos, muitas cidades para fazer e vai ser uma grande experiência. Vai ser muito intenso”, diz Olga. “Por vezes há muitos trabalhos com a comunidade que são muito simples, que chegas ao local, tens um ensaio e aquilo funciona no espectáculo no dia a seguir. Não é o caso deste. Eles têm personagens muito específicos, têm não sei quantas mudanças muito rápidas para fazer, têm danças de grupo, têm contagens, é complexo!”

Para que tudo flua, há cinco pessoas nos bastidores só para dirigir estes bailarinos amadores para o palco, para os tirar de cena, para os ajudar a vestir, para retirar adereços que não vão mais ser utilizados… “É realmente uma estrutura muito forte. Muito excitante ao mesmo tempo”, nota. “Na totalidade somos 11 pessoas que estamos em acção durante o espectáculo. Falo do som, da música, dos assistentes da direcção de cena, de cenografia, de figurinos, dos adereços... É uma loucura, mas foi possível fazer. Foi muito bonito.” Olga usa o passado porque a carreira da peça começou em Loulé, no final de Abril. Segue-se Lisboa e depois virão passagens por Portalegre (27 de Maio), Coimbra (4 de Junho), Bragança (17 de Junho), Águeda (8 de Setembro), Viana do Castelo (14 de Outubro), Ovar (27 de Outubro), Vila Nova de Famalicão (3 de Novembro), Aveiro (25 de Novembro) e, finalmente, o Porto, no Teatro Nacional São João (25 a 28 de Janeiro de 2024).

A Hora em que Não Sabíamos Nada Uns dos Outros
Estelle ValenteA Hora em que Não Sabíamos Nada Uns dos Outros

Em todas estas localidades será lançada uma open call à procura de candidatos, em particular pessoas com idades inferiores às dos bailarinos (18-30) e superiores (maiores de 50). “Tanto podem ser pessoas que já fizeram algumas coisas de teatro ou de danças de salão, ou nada, que queiram ter esta experiência. Em Loulé, inclusive, tive pessoas com alguma dificuldade física – porque já tinham muita idade. Mas eu utilizo isso.” Em Lisboa, o elenco mais jovem é composto por estudantes da Escola Superior de Dança.

Há um lado vertiginoso que tem a ver com isto, com um elenco maioritariamente inexperiente e com a quantidade de gente em constante afã, dentro e fora do palco. No entanto, não é vertigem que se sente, é tensão, graças à imparável sucessão de quadros na “praça”, à velocidade a que mudam figurinos, adereços, personagens. “O intérprete que faz esta peça – e ela realmente é muito cansativa por isso – tem de estar sempre no ponto de acção onde tudo se passa. Ele vai fazer alguma coisa, vem de algum lugar, vai para algum lugar, é um personagem específico, portanto tem um tema. Aquilo é visto naquele momento, mas aquela pessoa vem de um sítio e vai para outro. Aquele é um momento de passagem, que por acaso naquela clareira é visto pelo público. E isto é muito complexo, porque, a não ser um ou outro personagem, não tens tempo de fazer uma entrada em que vais desenvolvendo alguma coisa e que depois há um pico a subir e depois vai descendo, e se esvai à tua vista. Não. Isso não acontece. O que acontece é que há sempre essa tensão do personagem e do próprio intérprete, que se cruzam naquele momento”, afirma Olga.

A Hora em que Não Sabíamos Nada Uns dos Outros
Estelle ValenteA Hora em que Não Sabíamos Nada Uns dos Outros

A cenografia pensada pela coreógrafa com Eric Costa transforma essa clareira num “não-lugar”, para criar contraste com as personagens, que se querem reconhecíveis. “O que é que acontece? As pessoas que passam parece que são pessoas com quem te podes cruzar à entrada ou à saída do teatro, mas depois o que está à volta faz-te pensar: aquilo já é lava, é rochedo. Dali já não nasce nada”, continua Olga Roriz. “É muito negro, é muito duro, é um pensamento outro. Um outro discurso que se tem apenas pela cenografia.” É um espectáculo “muito imagético, que fica na retina”. Embora o público esteja, ele próprio, em constante alerta, sem saber para onde dirigir o olhar, tal é torrente de imagens.

Em Loulé, ri-se a coreógrafa, uma pessoa que estava ao lado do programador do Cineteatro Louletano estava a ver tudo de boca aberta. “Houve reacções a meio também. Logo no fim, sem ser as palmas, alguns gritos. Foi uma coisa estranha, que nunca me tinha acontecido em lado nenhum.” A irrupção de palmas, a meio, surgiu num momento inesperado para a coreógrafa: “uma altura em que entra como se fosse a trupe de circo”, que “é uma brincadeira” autorreferencial que Olga decidiu fazer aqui. “Pensei: o que é que que posso dar a este grupo de bailarinos que tenha a ver comigo, que eu até já tenha feito e que possa mostrar com um certo virtuosismo? E por isso é que fui buscar o Tristão e Isolda do Wagner, e aquele bocadinho daquela coreografia, que é da morte de Isolda, que eu fiz no Ballet Gulbenkian [em 1990]. E logo a seguir há uma espécie de luta cinematográfica. E a seguir, eles agradecem, mas um bocadinho como uma trupe de circo. E as pessoas fartaram-se de bater palmas. Isso foi engraçado, não estava nada à espera.”

São Luiz Teatro Municipal. 12-21 Mai. Sex e Sáb 20.00, Dom 17.30. 12€-15€

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