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“Quando Joana Carda riscou o chão com a vara de negrilho, todos os cães de Cerbère começaram a ladrar, lançando em pânico e terror os habitantes” (A Jangada de Pedra, 1986). Nos primeiros segundos Deste Mundo e do Outro, peça que dita o regresso de Olga Roriz ao Teatro Camões e à Companhia Nacional de Bailado (CNB), um tronco de bambu de cinco metros é arrastado pelo palco. A bailarina que o carrega nos braços parece marcar o território, com movimentos circulares, vagarosos.
“As mulheres do Saramago têm muito poder, são heroínas, guerreiras. São mulheres com muita força, são aquelas que parece que ficam para trás, mas são as que salvam”, diz à Time Out a coreógrafa. Essa mulher que dita a iniciação pela viagem saramaguiana é a personagem central de Jangada de Pedra, Joana Carda. “É um bocadinho uma magia que ela vai fazer aqui dentro deste espaço, levá-lo para outra dimensão”, explica Roriz que, sob o pretexto do centenário do nascimento de José Saramago, foi desafiada por Carlos Prado, director da companhia, a encontrar-se com o Nobel da Literatura. “Já tive encomendas em que foi difícil entrar no tema, mas esta calhava-me que nem uma luva, senti que inclusive tinha algumas peças da minha companhia que poderiam ser uma peça sobre Saramago”, sugere, dando como exemplo Síndrome (2017), em que se debruçou sobre o pós-guerra e a reconstrução da cidade de Alepo.
Deste Mundo e do Outro, que se apresenta no Teatro Camões de 23 a 26 de Junho, foi uma das mais recentes leituras da coreógrafa. No princípio, ainda ponderou pegar apenas nas pequenas histórias desse livro de crónicas – 221, publicadas no jornal A Capital, entre 1968 e 1969 –, mas depressa começou “a ler outras coisas, a ver milhares de documentários e entrevistas”. Não quis desperdiçar o universo saramaguiano e cingir-se a um livro. Ao invés, mergulhou nele profundamente, navegando na literatura do escritor português. “Deixei o título Deste Mundo e do Outro precisamente porque ele é muito vasto”, justifica, evocando a janela para o mundo que a sua literatura escancara. “Saramago é super-aberto. Os temas que ele usa são imensos. Tudo o que ele escreveu é sobre a humanidade. A humanidade em todos os sentidos.”
Esse universo vasto permitiu-lhe "aqui e ali buscar uma personagem", admite. É o caso de um dueto entre Baltasar e Blimunda (Memorial do Convento); de um solo que lembra a Mulher do Médico, de Ensaio sobre a Cegueira; ou de um momento que referencia A Jangada de Pedra, com as suas cinco personagens. “Há muitos sinais, algum simbolismo, mas eu queria [tudo] muito aberto, quero que o público que leu e que não leu o Saramago possa ler o que quiser ler por todo o lado”, diz Olga Roriz.
Um dos cantos da sala de ensaios do Teatro Camões está forrado a folhas A4 com frases destacadas de livros e de entrevistas de Saramago. A coreógrafa mostrou-as aos bailarinos, metade deles desconhecedora da obra saramaguiana. Essas mesmas frases repetem-se, em murmúrio, no único momento falado Deste Mundo e do Outro. "As histórias das pessoas são feitas de lágrimas”, sussurram alguns.
Só que na coreografia de Roriz impera, mais do que a tristeza, o peso da humanidade que os bailarinos da CNB carregam no corpo, que se movimenta com inquietude, tanto em horas em que a pele se arrasta no chão, como noutras em que o ritmo acelera e o elenco corre, em conjunto, sem destino. “Essa inquietação é a coisa mais bonita na dança, que nos abre caminhos. Não precisamos de nos limitar. Precisamos é de ter criatividade, de imaginar coisas”, diz. “Acho que o espectáculo não vai ser pesado, mas é forte, é denso. E vai ter camadas.”
A última de todas é a festa – aliás, várias festas. “É eu estar aqui [na CNB] outra vez. É eles gostarem que eu esteja aqui. O Saramago ter este aniversário e nós celebrarmos um grande autor português”. “Era o povo pequenino, pés descalços na geada”, ouve-se na voz de Lila Fadista e nos acordes de João Caçador, a dupla que forma o Fado Bicha. Olga surpreendeu a própria equipa (e promete fazer o mesmo com o público) com a escolha para encerrar esta viagem. “É confrontar a erudição, que Saramago não era, com os Fado Bicha. É esse confronto, é isso que eu quero”, declara. “[Esta canção] é o povo português. É Saramago no sentido dos temas, da maneira como ele nos expõe o interior deste Portugal. O sofrimento, a pobreza, o analfabetismo. Aquela canção fala de tudo, é incrível. Parece o resumo do Levantado do Chão."
À Time Out, Roriz adianta que, depois das quatro récitas no Teatro Camões, a peça subirá ao palco em duas noites no CCB, em Lisboa, em Setembro. Ao Porto deverá chegar em Outubro.
Teatro Camões (Lisboa). 23-26 Jun. Qui-Sex 20.00, Sáb 18.30, Dom 16.00. 10€-20€
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