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Nem todo o património é feito de pedra ou vitrais, música ou tradições. Lisboa é também a fiel depositária de um património aquático que urge proteger, do qual os golfinhos são a principal bandeira. A população destes mamíferos está a aumentar no rio Tejo e o fenómeno está ser estudado, ao mesmo tempo que se alerta para a importância da preservação da biodiversidade lisboeta.
Golfinhos no Tejo é o nome deste novo projecto financiado pela Fundação Azul e que junta a operadora marítimo-turística Terra Incógnita e a Associação Natureza Portugal | World Wide Fund For Nature (ANF|WWF), ONG de conservação da natureza. Juntos andam a investigar a chegada de dezenas, às vezes centenas, de golfinhos ao rio, um número que cresceu a olhos vistos no último ano. E juntos também apelam a todos os lisboetas que ajudem a proteger o Tejo e os seus habitantes. Estivemos à conversa com a equipa deste projecto e depois entrámos num barco para visitar os golfinhos, sem criar má vizinhança.
Muitos anos a virar marés
O avistamento de golfinhos no rio não é novidade, mas o aumento desta espécie nas águas de Lisboa pede que se lance um alerta. Quem começou por carregar no botão vermelho foi Bernardo Queiroz, fundador e director-geral da Terra Incógnita, que após 30 anos no rio viu algumas coisas pela primeira vez. “De há dez anos para cá, com as águas a ficarem mais limpas, há golfinhos no rio com alguma regularidade. Mas alguma regularidade não é nada do que se tenha visto o ano passado e este ano”, diz, garantindo que em 2020 até conseguiram ver golfinhos 90 dias seguidos, golfinhos-comuns, não roazes-corvineiros como os que existem no rio Sado.
“Não deve haver nenhuma capital na Europa – e deve haver poucas no mundo – que tenha grupos de 30, 40, já chegamos a ver 200 golfinhos a entrarem rio adentro para se alimentarem. Como é uma coisa única, e são animais selvagens de uma extrema beleza que sensibilizam qualquer pessoa, achamos que é um veículo óptimo para consciencializar as pessoas para a protecção dos rios, dos oceanos, e da vida marinha no geral”, diz Bernardo, que encontrou os parceiros ideais na ANF|WWF.
A importância de proteger
Rita Sá, bióloga da ANF|WWF que coordena este projecto, explica que os golfinhos são visitantes do rio de tempos longínquos. Depois foram desaparecendo, mas este regresso a casa é também uma oportunidade para saber muito mais do que conta a história. “A Terra Incógnita está todos os dias no terreno, vão acompanhando estas dinâmicas e nós queremos saber mais. Queremos saber porque é que os golfinhos estão cá e porque ficam mais tempo. A ideia é investigarmos em conjunto esta espécie neste sítio e o que podemos fazer para que todos os habitantes da Área Metropolitana de Lisboa se apropriem desta espécie como os seus golfinhos, os seus habitantes e a sua ligação ao oceano”, explica a especialista.
O Golfinhos no Tejo é o que chamam de “projecto-chapéu”, ou seja, os golfinhos também vão servir de veículo para conhecermos melhor o que realmente se passa no Tejo, desde a questão da poluição a outras espécies que também merecem protecção. Além da investigação, o projecto irá envolver as escolas e outros elementos da população para passar a informação e apelar à contribuição de todos. “Isto é um património único que queremos dar a conhecer. Queremos conseguir passar outro tipo de mensagens ligadas à conservação marinha que muitas vezes é difícil as pessoas perceberem. Porque é debaixo de água, não vêem, não percebem. Os golfinhos no Tejo são algo único no mundo e temos de nos apropriar dos nossos golfinhos para os protegermos, porque é o nosso rio, são as nossas espécies”, defende Rita Sá.
Tomar acção
A Terra Incógnita já anda a recolher dados científicos para serem analisados pelos especialistas da ANF|WWF. Dados como as horas a que avistam os golfinhos, quantos são, como agem ou as coordenadas geográficas onde se movem, uma valente ajuda para estabelecer um padrão de comportamento dos animais. Está também prevista a intervenção directa junto das autoridades e da comunidade piscatória com acções de formação concretas sobre a protecção do meio ambiente, como a redução do lixo marinho. Bernardo Queiroz não podia estar mais dentro deste barco. “Quando vejo lixo na água vou apanhá-lo. Só de pensar que aquilo vai poluir o rio ou o mar e que vai interferir com os golfinhos, que é uma espécie que eu adoro, faz mudar o meu comportamento”, remata.
No terreno, neste caso na água, Bernardo Queiroz já tem saído em defesa dos golfinhos, explicando às embarcações de operadoras marítimo-turísticas os cuidados que têm de ter quando se aproximam dos animais. “Todos os fins-de-semana chateio-me, porque cruzam o grupo de golfinhos da esquerda para a direita, da direita para a esquerda a alta velocidade. Nós chegamos a pôr os nossos barcos à frente e obrigá-los a reduzir a velocidade. Vemos crias com pregas, têm horas de vida. Mas as pessoas mudam completamente o seu comportamento, passam a andar devagar, a ter cuidado, a não cruzar o grupo a meio, a não se aproximarem muito da frente. Há uma série de regras que nós passamos neste momento no terreno, mas temos de o fazer de uma forma mais institucional e mais alargada”, adianta o homem que até já viu orcas na Fonte da Telha ou baleias-anãs no Canhão de Lisboa, num Atlântico perto da costa.
A alegria de ver os golfinhos tem de ser assim acompanhada por muita preocupação, porque estarem a viver num espaço mais confinado e congestionado do que o oceano é também um perigo: “Há mais barcos e ficam muito excitados com os golfinhos. Toda a gente quer ver e não se comportam como deve de ser. Não por maldade, mas porque não sabem. E se nós não lhes explicarmos, não vamos estar a proteger os golfinhos”. Além do turismo, outro perigo para o bem-estar da espécie no Tejo são as linhas de pesca. “Queremos sensibilizar as comunidades piscatórias para a protecção desta espécie. O rio está cheio de redes ilegais”, lamenta Bernardo Queiroz.
Golfinhos à vista
Sabia que os golfinhos chegaram a entrar pelo rio até Constância, a mais de 100km de Lisboa? Quem o garante é Ana Henriques, Técnica de Oceanos e Pescas da ANP|WWF, referindo-se à relação entre os golfinhos e o Tejo, “há centenas de anos”. “Depois com as barragens, com cada vez menos habitat e menos alimento começaram a sair do rio, mas agora voltaram”, continua. A bióloga explica que através do estudo dos golfinhos é possível chegar a outras áreas da conservação marinha, o que os torna uma espécie de relações públicas do ecossistema do rio. “O golfinho como é um animal extremamente social, muito semelhante a nós, exibe comportamentos com os quais facilmente nos identificamos. São espécies estruturadoras das comunidades marinhas, de topo, que nos indicam que há uma certa qualidade ambiental que queremos manter no futuro. E queremos ter a certeza que o turismo não vai afectar as suas vidas”, explica Ana Henriques. Por isso mesmo serão feitas recomendações a entidades específicas para reduzir os impactos das actividades humanas no rio e manter as condições para que os golfinhos continuem a visitar o rio.
Mas são sempre os mesmos golfinhos que por aqui andam? Bernardo Queiroz diz que não. Primeiro pela dimensão do grupo (às vezes são quinze animais, outras chegam a ser 200). Há dias em que o Tejo chega a parecer um verdadeiro episódio da National Geographic, com golfinhos a alimentarem-se da Trafaria até à Ponte 25 de Abril, gerando também um frenesim de gaivotas que se vão contentando com os restos. “Havia no outro dia, em conversa com biológicos, a hipótese de eles também estarem a utilizar estas águas protegidas do rio como maternidade, o que ainda é mais sensibilizador para as pessoas. Vemos crias a saltar todas taralhocas ainda assim de lado, a virem à superfície com a ajuda da mãe”, conta o director-geral, uma teoria a ser investigada pela ANP|WWF.
Não é a única: a diminuição da poluição ou a redução do tráfego pesado no último ano, um factor importante se tivermos em conta que estes animais, que podem atingir os 800 kg, conseguem ouvir dez vezes mais que nós, também serão investigadas. Bem como a redução substancial na pesca. “O rio está cheio de alimento. O ano passado vi corvinas grandes à superfície que achei que eram golfinhos, porque andavam a nadar à superfície na frente do barco. Em 30 anos de rio nunca tinha visto nada assim”.
terraincognita.pt e natureza-portugal.org
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