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Há uns meses fui a um restaurante, menu de degustação de 140 euros, Michelin do bom. A rapariga veio com a maquineta para pagar com cartão e bichanou qualquer coisa muito rápido, “blábláblá, blábláblá… gratificação”.
Assumi que me estava a informar sobre a possibilidade de deixar gorjeta, através do tablet onde vinha a conta, mas assumi mal. Já no recolhimento do lar, quando olhei para a factura, percebi que estava a dizer outra coisa: que o valor da gorjeta, associado automaticamente, era de quase 50 euros, 15 por cento do valor final da factura.
Para a recusar, teria de o ter dito expressamente – a ela, empregada que me servira, para quem iria a gorjeta; mas também – como não? – a quem estava ao meu lado, minha convidada, a quem pagara a refeição; e a toda a sala, em suspenso por aquele julgamento sumário.
Foi um momento delicado, que infelizmente se tem repetido.
Desde a pandemia que o software de pagamento automático dos restaurantes, sobretudo os das zonas mais turísticas, passou a incluir mecanismos que forçam o pagamento de gratificações.
Em alguns, a gratificação já vem somada ao total, mas na maioria é perguntado e dada a possibilidade de escolher a percentagem do valor da refeição que se quer pagar: as opções podem começar nos 5 por cento e ir até aos 25 por cento.
Desde o episódio do Michelin que me tenho recusado a pagar gorjeta, com este procedimento. Por várias razões.
Sei bem que a restauração é um negócio complicado. Que se tornou ainda mais complicado após a pandemia; e que houve a guerra e a inflação (incluindo nos menus). Também sei que as pessoas andam com menos moedas e notas nos bolsos.
Sei tudo isso, mas sou contra: o sistema de gorjetas digital em voga – de gorjeta ou morte, de gorjeta ou vexame –, é uma forma chica-esperta e opaca de resolver o problema.
Começa por não sabermos ao certo para onde vai o dinheiro. Os restaurantes têm várias formas de distribuir o valor das gorjetas, hoje em dia. Na maioria dos casos, a gorjeta já não vai para o empregado a quem a entregamos.
Aquela ideia de gratificar o Zé Manel, porque foi exemplar na forma como resolveu o problema da criança birrenta – isso acabou, pelo menos na restauração mais sofisticada. Hoje em dia, a gorjeta do Zé Manel terá de ser repartida com a do trombudo do colega António, que passou a noite a trocar os pedidos – e com sabe-se lá mais quem.
O modelo em voga é dividir o valor das gorjetas pelos empregados, no final do mês. Mas que empregados? Os da sala? Os da sala e da cozinha? E os cozinheiros e o chef recebem? E será que, nalguns casos, os administrativos e gestores também entram no bolo? O cliente não tem forma de saber.
Da mesma forma, os valores podem oscilar tremendamente. Alguns empresários do sector reportaram-me desde 100 euros mensais em gorjetas, para cada empregado, em casas de clientela portuguesa, até 500 ou 600 euros, em restaurantes de sucesso entre os estrangeiros (podendo representar metade ou mais do valor do salário).
De tudo isto resulta que a gorjeta deixou de ser um acto de liberdade e amor, para se tornar numa imposição em forma de tablet. Numa imposição que pode ser bastante lucrativa.
De acordo com declarações ao The New York Times de um responsável por uma das empresas líder na venda destes sistemas de pagamento à mesa, a Square, há restaurantes em que o aumento no valor das gratificações subiu 50 por cento; e que tem tudo a ver com o facto de se estar em frente a alguém no momento do pagamento – "eles sabem se se dá gorjeta ou não". "Nesse momento, é muito mais provável que as pessoas sejam generosas e que gratifiquem", admitiu.
Nos EUA, a cultura das gratificações está muito mais difundida do que por cá e sempre foi mais generosa. Lá, estes sistemas também existem há mais tempo e já estão em restaurantes de takeaway e cadeias de fast food.
Mas Lisboa ainda não é Nova Iorque, a não ser nos preços da comida. E mesmo que fosse.
A gorjeta – perdão, a gratificação – deve continuar a ser um acto de recompensa livre. Sem pressão social. Sem truques.
Dar gorjetas a quem merece. Não a quem pede. Não a quem impõe.
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