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A notícia é, à partida, boa, mas só esta terça-feira vamos perceber o que significa realmente Portugal ter um Guia Michelin exclusivo. Não é expectável que, de repente, chovam estrelas. A Michelin fez saber que um guia dedicado ao nosso país não seria sinónimo de um maior número de inspectores portugueses – e o que se sabe é que por agora serão apenas um ou dois. Entre as apostas e as perguntas sem respostas, há duas que se repetem até à exaustão. Teremos, finalmente, um restaurante a conquistar a terceira estrela? E será que é desta que uma mulher consegue a estrela? É sobre esta última que me debruço, não fosse ela feita quase sempre com uma mulher em vista, apesar de haver outras igualmente destacadas: Marlene Vieira.
É verdade que a chef abriu o Marlene, em Abril de 2022, com esse objectivo. No entanto, é justo acrescentar à pressão de manter um restaurante ao mais alto nível o peso de representar as mulheres num sector em que a paridade não existe? Quem aponta Marlene Vieira à estrela fá-lo por lhe reconhecer o trabalho, espera-se – mas a que custo? Há até quem diga que será a primeira mulher a receber uma estrela Michelin em Portugal, o que só demonstra esquecimento. Antes de a gastronomia ser moda e de os cozinheiros serem transformados em estrelas de rock, Ilda Vinagre conseguiu chamar à atenção do Guia com um restaurante na Terrugem, o Bolota – a chef acabaria por sair pouco antes da estrela, em 1992. No ano seguinte, Maria Alice Marto conseguiu o feito para o Tia Alice, em Fátima, mantendo a estrela durante três anos.
Passaram-se quase três décadas e a lista de mulheres estreladas não cresceu, pelo contrário. Ora, esse problema não pode estar às costas de uma chef, ou de um pequeno grupo de mulheres chefs. Recordemos que, no ano passado, a equipa do site especializado Chef’s Pencil concluiu que só cerca de 6% dos restaurantes com estrelas Michelin no mundo tinham uma mulher na chefia da cozinha. Olhando para os The Best Chef Awards, que todos os anos apontam os 100 melhores chefs do mundo, apenas 18 são mulheres (três das quais aparecem ao lado de um homem).
No 50 Best Restaurants, o cenário não é muito distinto, com a diferença de que estes prémios decidiram implementar há dez anos a distinção de melhor mulher chef. Em 2017, quando este título foi entregue à eslovena Ana Roš, o director de conteúdo do 50 Best, William Drew, não escondeu que havia quem contestasse o prémio com o argumento de que este acabaria por ter o efeito contrário, contribuindo também para o sexismo. “Rejeitamos categoricamente essa ideia. Consideramos que a existência desta categoria específica de género contribui efectivamente para corrigir um desequilíbrio, ao mesmo tempo que reconhecemos que o mundo das cozinhas de restaurantes continua a ser predominantemente masculino”, argumentava num artigo online. “Não se trata de um prémio que pretende separar a cozinha feminina ou defini-la como ‘outra’, mas sim reconhecer tacitamente uma verdade inegável: para muitas mulheres, chegar ao topo é frequentemente mais difícil e envolve sacrifícios maiores do que para os seus colegas masculinos.”
Em Espanha, país que Portugal deixa agora de acompanhar no Guia Michelin, dos 272 restaurantes estrelados, apenas 21 têm uma mulher ao leme. Os números não mentem e são ainda mais assustadores e reveladores se olharmos também para a falta de diversidade. Este mês, Adejoké (Joké) Bakare, chef do Chishuru, em Londres, tornou-se na primeira mulher negra a conquistar uma estrela Michelin no Reino Unido, apenas a segunda no mundo – e, neste campo, nem os homens se destacam e duas mãos chegam e sobram para nomear os chefs negros com a mais alta distinção gastronómica.
Em Portugal, ainda é preciso fazer um esforço para encontrar essa representatividade e é por isso que a existência do Guia Michelin Portugal tem de servir também para a reflexão no meio. O caminho é longo, como se vê pelos países que nos levam uns anos à frente. Que o façamos, então, sem ângulos mortos.
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