Notícias

Orçamento Participativo: o forte da discórdia

O interior de um monumento esquecido é hoje um terreno em disputa por dois projectos do Orçamento Participativo de Lisboa. Falámos com as cidadãs que fizeram as propostas, entretanto modificadas pelo município.

Renata Lima Lobo
Escrito por
Renata Lima Lobo
Jornalista
Baluarte de Santa Apolónia
Fotografia: Francisco Romão PereiraInterior do Baluarte de Santa Apolónia
Publicidade

Desde 2008 que os alfacinhas, além de entidades públicas e privadas, podem propor as suas ideias para a cidade através do Orçamento Participativo de Lisboa. Mas nem tudo têm sido rosas: muitos projectos parecem não sair da gaveta e agora há um território disputado por duas propostas apresentadas – e aprovadas, em edições diferentes. De um lado, a “Recuperação do interior do Baluarte de Santa Apolónia para jardim urbano”, do OP 2021 e relativa a este território da Freguesia da Penha de França; do outro a “Parque Infantil Inclusivo/Adaptado”, do OP 2018/2019, que inicialmente seria implementada na Freguesia de São Vicente. Mas este projecto acabou por ter como destino o mesmo baluarte, também conhecido como Forte de Santa Apolónia – um monumento criado no século XVII e uma estrutura defensiva erguida por alturas da Guerra da Restauração, mas entretanto esquecido e praticamente abandonado. Hoje, parte do interior é utilizado por agricultores urbanos que aqui têm os seus talhões municipais, hortas que futuramente serão transferidas para um terreno ali perto, na Rua Paio Peres Correia. Mas isso é outra história.

Sandra Campos, representante do Grupo de Moradores de São João e proponente do projecto para o jardim na Penha de França – uma freguesia com poucos espaços verdes (apesar de não haver falta de espaço) – não ficou feliz quando descobriu que a sua proposta verde iria ser partilhada com um parque infantil que iria ocupar grande parte do espaço. O projecto para o parque infantil inclusivo foi transferido de São Vicente para a Penha de França pela impossibilidade técnica de ser implementado no território inicial proposto, conta à Time Out Patrícia Pombinho, a proponente do projecto dedicado a crianças com limitações físicas e/ou cognitivas. Não tendo conhecimento desta situação, Sandra avançou com sua proposta para este espaço, aprovada e votada no âmbito do OP 2020, mas acabou por descobrir sozinha que, afinal, este projecto iria ficar reduzido “a um canteiro”, como descreveu à Time Out.

Trocando por miúdos, o OP desenvolve-se em várias fases: na primeira são enviadas as propostas, na segunda é feita uma análise técnica pelos serviços municipais (que poderá significar um englobamento de várias propostas numa só); e, por fim, após um período de lançamento de resultados provisórios aberto a reclamações, os projectos podem ir a votos. No entanto, e segundo o Regulamento do Orçamento Participativo, após o anúncio dos projectos OP Vencedores, “os/as proponentes ou promotores/as dos Projetos vencedores serão envolvidos, prevendo-se a realização de reuniões numa fase inicial de definição do projecto, bem como nas fases seguintes do seu desenvolvimento, ou sempre que necessário, garantindo que o proponente se reveja na solução final executada”.

À proposta da qual Sandra Campos é a primeira proponente foi atribuído o número 218, que depois passou a ser o projecto nº 35/2021, uns dos vencedores do OP. Mas a representante dos moradores de São João não se revê nesta solução final e critica a falta de comunicação da CML sobre a mudança ao projecto. “Descobri sozinha que foi feita uma alteração”, disse à Time Out, referindo-se à altura, após a votação, em que reparou que no seu projecto constava a descrição: Baluarte de Santa Apolónia – Enquadramento paisagístico ao futuro Parque Infantil Inclusivo, sem mais pormenores. Só com um olhar muito atento percebeu que a sua proposta tinha sido transformada num projecto que incluía a de Patrícia Pombinho.

Estamos a votar para o projecto Baluarte de Santa Apolónia, requalificação do seu interior para Jardim Urbano, com o mesmo título, com as mesmas fotografias, com os mesmos detalhes da proposta original do jardim, mas, no entanto, a CML apaga a descrição e coloca, algures no tempo, uma única frase no fundo da página: ‘Enquadramento paisagístico ao futuro parque infantil inclusivo adaptado’.” Como espera a Câmara que, sem informação, as pessoas que votaram adivinhem que afinal não era um jardim, mas um parque infantil adaptado?, questiona Sandra Campos numa Carta Aberta (que pode consultar no grupo de Facebook), escrita após ter recebido um convite para a apresentação dos Projectos Vencedores OP, que decorreu no passado dia 1 de Julho.

Forte de Santa Apolónia
Fotografia: Francisco Romão Pereira / Time OutInterior do Baluarte de Santa Apolónia

Em São Vicente, Patrícia, mãe de um filho com autismo (e também por isso dedicada a uma “cidade para todos”), explica que inicialmente tinha proposto outros locais na sua freguesia para a construção do parque inclusivo, da Quinta do Ferro ao Vale de Santo António. Mas, como explica, os técnicos municipais não encontraram um terreno viável para a implementação do projecto votado. “Depois a Penha de França deu a mão. Eu também não queria que o projecto fosse para outra freguesia, mas aceitei ver na Penha de França, porque ficaria numa proximidade e porque há ali muitas escolas, pensei que poderia ajudar”, explica à Time Out, sublinhando que “a Sandra tem razão”, por não ter tido o mesmo acompanhamento no seu projecto. E confessa que tinha receio que o seu projecto ficasse na gaveta. “Se se encontrasse outro local eu também não me iria opor. Mas há orçamentos que nunca saíram da gaveta, que acabaram por ficar perdidos”, lamenta Patrícia, que nas últimas eleições autárquicas acabou por ser eleita como independente pelo Bloco de Esquerda para a Assembleia de Freguesia de São Vicente, onde diz lutar pelas pessoas com deficiência.

Quanto ao forte, acrescenta: “Se é o espaço ideal? Não é. Mas Lisboa está tão densa que não está pensada para as acessibilidades. Dentro deste contexto, acreditei nos técnicos e confiei nas pessoas. Gostava que isto não se transformasse numa guerra, mas num trabalho conjunto.”

Sandra não baixa os braços. “São os moradores de São Vicente que têm de ter um parque. Não têm de ir de carro. A conveniência de um parque infantil é a proximidade”, contrapõe, insistindo que não acredita haver condições para um parque infantil inclusivo dentro do Forte de Santa Apolónia, pelos difíceis acessos e falta de árvores que possam oferecer sombra. “Queremos um jardim, porque a população está envelhecida. Não temos espaços verdes e aqui temos a possibilidade de olhar para o Tejo”, descreve a proponente frustrada – que ainda não desistiu de lutar pelo espaço verde que idealizou para a sua comunidade.

Até à data de publicação deste artigo, a Câmara Municipal de Lisboa e a Junta de Freguesia de São Vicente não responderam à Time Out. Da secretaria da Junta de Freguesia da Penha de França, chegou a reacção: “No seguimento do seu email, podemos responder que o Orçamento Participativo é um programa da Câmara Municipal de Lisboa que nós recebemos de braços abertos sempre que beneficia a população da Penha de França. Tendo em conta que a Junta de Freguesia não é a entidade competente pela organização e execução do OP, nada mais devemos acrescentar.”

+ Moedas quer trocar Feira Popular em Carnide por novo parque urbano

+ Superlinox, o artista mistério, deixou ‘Sofia’ no Elevador de Santa Justa

Últimas notícias

    Publicidade