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O sol queima, a hora de almoço ainda está longe e alguém dormita numa das salas do Teatro da Politécnica, casa dos Artistas Unidos desde 2011. É aí que nos encontramos com Pedro Carraca, o actor e encenador que começou a fazer teatro aos 12 anos e se estreou com Jorge Silva Melo aos 23. Fez parte do elenco de O Fim ou Tende Misericórdia de Nós, que subiu ao palco na Culturgest, em 1996, ano de oficialização da companhia. “A forma de fazer do Jorge era muito diferente da dos outros naquela altura”, diz. “Noutros grupos, sentas-te, lês o texto e estás ali a discuti-lo. Com o Jorge, não. Líamos uma vez e a seguir ele dizia ‘agora façam’. Ficámos em pânico. Tínhamos 20 e poucos anos e ele já era considerado um monstro sagrado do teatro. Mas fizemos a primeira cena e ele disse ‘gostei muito, façam lá outra vez’. Fizemos mais três ou quatro vezes e ele disse ‘é isso, agora façam a segunda’.” E é assim que se continua a fazer nos Artistas Unidos, garante Carraca, que agora divide a responsabilidade de honrar a obra e o legado do fundador com António Simão e João Meireles.
A estrutura formou-se a partir do grupo que estreou, em 1995, António, Um Rapaz de Lisboa. Jorge Silva Melo, que assinava o texto e a encenação, sonhou com uma companhia de Artistas Unidos, com sessões simultâneas, projectos dirigidos por várias pessoas, jovens em início de carreira e novas dramaturgias e autores, que fizessem reflectir, por um lado, e pudessem interessar a um público vasto e popular, por outro. Foi o que tentou fazer durante mais de duas décadas, apesar das várias mudanças de espaço, do edifício de A Capital ao Teatro da Politécnica, e de muitas outras dificuldades e desilusões, que foram surgindo pelo caminho. Silva Melo morreu aos 73 anos, vítima de doença oncológica, mas não sem antes projectar o futuro da companhia. Nos seus últimos dias no hospital, discutiu o que estava para vir, sabendo que já cá não estaria para o ver. “O Jorge esteve sempre aberto a acolher e a trabalhar com outros grupos e artistas, inclusive os que nada tinham a ver com ele. Queremos respeitar essa visão e a aposta em autores contemporâneos, que gostávamos de voltar a levar aos grandes palcos. Mas não somos o Jorge. Somos outras pessoas.”
Há um antes e um depois de A Capital e haverá um antes e um depois da morte de Silva Melo. Carraca não tem pudor em admiti-lo. Nos primórdios dos Artistas Unidos, o mestre era um sonhador, achava tudo possível e era verdadeiramente teimoso. “O dinheiro não dava para pagar um elenco fixo de nove actores, mas se o Estado nos dava 40 mil contos, gastava-se 80 mil. A teoria era ‘vamos ficar cheios de dívidas, mas vamos provar-lhes que, da próxima vez, têm de nos dar mais, porque temos capacidade para fazer’. Era uma dinâmica infernal, mas altamente cativante. E, como o Jorge não conseguia fazer tudo sozinho, fomentava pequenos grupos de trabalho, que iam criando. Havia liberdade, furava-se o chão das salas, mandavam-se paredes abaixo. Mas depois veio o desgosto [quando se percebeu que, afinal, A Capital nunca viria a ser um centro de artes]. Centralizou o poder, fechou-se em casa, escreveu para todo o lado. Com os anos e a idade, foi-se isolando e perdendo a paciência e a energia.” Talvez por isso a companhia já estivesse preparada, do ponto de vista organizacional, para a perda. Pedro já tomava conta das finanças, João Meireles da produção, António Simão da livraria e da bilheteira, e Andreia Bento das edições.
A dinâmica não é exactamente a mesma. De repente, cada decisão parece demorar muito mais tempo. As vontades tocam-se, mas as perspectivas são diferentes. Ainda assim, estão todos de acordo no essencial: não querem desvirtuar o que têm vindo a criar em conjunto. De resto, tencionam “pessoalizar” quer na abordagem do espaço quer na representação. “Por exemplo, sempre tive uma opinião sobre os cenários muito diferente da do Jorge. Mas tinha de haver um encontro entre a visão dele e a minha. Agora há um encontro entre aquilo que eu gostaria de ver em cena e aquilo com o qual, acho, ele não se importaria.” Esse balanço reflecte-se também na programação da nova temporada, que é assumidamente de transição: “Com ideias do Jorge, outras que ainda chegámos a discutir com ele e algumas só nossas, porque queremos começar a criar uma linha dramatúrgica própria. Mas não podemos anunciar sem saber em que espaço é possível fazer.” O arranque da temporada acontece com Terra de Ninguém, de Harold Pinter, em cena de 15 de Setembro a 15 de Outubro, no Teatro da Politécnica. O resto ainda está no segredo dos deuses. Uma eventual mudança de sede para os Artistas Unidos, também.
A ambição, confessa Pedro Carraca, é continuar a produzir cerca de quatro a seis peças por ano, colaborar cada vez mais com outras companhias e ter um espaço onde seja possível oferecer-lhes condições que agora não lhes são oferecidas. “Tempo de apresentação, por exemplo. Uma companhia nova no São Luiz ou no Nacional está dois ou três dias em cena. Ou um, como ando a ouvir dizer. E nós gostávamos, por um lado, de ter um espaço onde se possa estar durante pelo menos três semanas, como fizemos recentemente com o Teatro Volta e Meia; e, por outro, de utilizar a nossa máquina de produção para ajudar algumas dessas companhias. E, claro, que esse espaço servisse para destruir essa ideia antiga, mas ainda bastante presente na realidade teatral, de que cada companhia tem uma casinha, que é uma ideia que veio de uma geração que lutou muito para ter o seu teatro e passou a viver muito dentro do seu teatro. Para nós, faz sentido contrariar essa tendência e criar pontos de ligação com outras companhias, tanto com as mais novas como as da mesma dimensão que nós. No fundo, de contribuir para que o meio seja mais unido.”
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