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A equipa de conservadores do Palácio Nacional de Sintra é responsável por investigar o passado das suas diferentes salas e resgatar as memórias perdidas dos acontecimentos mais relevantes para a compreensão daquele que é o palácio mais antigo do país. Durante dois anos, aproveitando sobretudo os longos períodos de confinamento e os meses em que o edifício esteve fechado ao público, foi possível desvendar a riqueza histórica até então desconhecida da Sala das Galés. “Era um dos espaços mais enigmáticos, porque não tínhamos informação absolutamente nenhuma, sobre quando tinha sido construída ou para que servia inicialmente”, revela ao telefone o conservador Bruno A. Martinho, responsável pelo projecto de revisão da musealização da sala, que agora se sabe ter sido uma galeria do século XVI, a única galeria palatina desta época conhecida em Portugal.
De acordo com o conservador, o processo começou gradualmente em 2019, mas a investigação foi mais intensa durante o ano de 2020. “Perante um redireccionamento das prioridades, investiu-se na colecção permanente do palácio, para que, quando voltássemos a abrir, o tivéssemos renovado. Apesar de termos olhado para o palácio no seu conjunto, uma vez que se compõe de vários núcleos, funcionando como uma máquina em que cada secção do edifício é uma peça diferente, percebemos que tínhamos na Sala das Galés uma peça do século XVI, mas não sabíamos para quê, e começámos então a investigar a sua função original”, esclarece Bruno, cujo trabalho invisível, mas muito importante, inclui levantamento de documentação, em locais como a Torre do Tombo, e contactos com as universidades, inclusive para colaborações. “Foi essa a nossa prioridade nos últimos dois anos. Em paralelo, fomos também encontrando mais dados sobre outros elementos do edifício e prevemos ter mais novidades para divulgar em breve.”
Quanto à descoberta agora anunciada pela Parques de Sintra – Monte da Lua, responsável pela gestão do Palácio Nacional de Sintra, resulta da reunião e análise de um conjunto de fontes escritas e pictóricas, que permitiu concluir que a Sala das Galés terá sido mandada construir por D. João III, para conectar os aposentos principais, a sul, com a ala noroeste do palácio. Tendo sido inaugurada por volta de 1534, é agora considerada um exemplo muito precoce de uma galeria palatina. “Foi um verdadeiro puzzle”, confessa Bruno. “Tínhamos dois documentos soltos. Uma carta do infante Dom Luís, irmão do rei D. João III, que falava de umas obras no Paço de Sintra. É provavelmente da primeira metade do século XVI e conseguimos perceber que ele tinha de estar a falar desta parte do palácio. Depois tínhamos também uma Crónica de El Rei Dom Sebastião, que fala de uma sala no palácio onde o rei ia dialogar com os seus mestres. Para conectar estas informações, procurámos outros exemplos de palácios europeus, para tentar perceber o que estava a ser feito no século XVI e que outras salas, parecida com a das Galés, poderiam existir.”
A nível europeu, há muitos exemplos de galerias palatinas, como a Galeria dos Ofícios, em Florença, a Galeria de Francisco I, em Fontainebleau, ou a Sala das Batalhas no Mosteiro de São Lourenço do Escorial, nos arredores de Madrid. Tratando-se de espaços alongados, muitas vezes com vistas deslumbrantes, as galerias do século XVI serviam, por um lado, para passear e desfrutar das paisagens lá fora e, por outro, para estimular o diálogo intelectual, entre um mestre e um discípulo. “Tendo em conta as fontes escritas, a fonte iconográfica e a fonte principal, que é o próprio edifício e a sua comparação com outros congéneres europeus, chegámos à nossa conclusão, de que a Sala das Galés é a primeira galeria palatina do século XVI a ser identificada em Portugal.” Evocando a função original deste espaço, já alterado várias vezes e desprovido da sua decoração primitiva, a nova abordagem museográfica procura valorizá-la como espaço do Humanismo em Portugal, promovendo um debate intelectual inspirado no passado histórico do Paço de Sintra e na sua condição de edifício híbrido marcado pelo gosto mudéjar, uma simbiose entre a arte cristã e a arte muçulmana, que traz à memória episódios tanto de intercâmbio cultural como de conflito.
A nova exposição da Sala das Galés recorre a um variado conjunto de objectos da sua colecção, mostrando que, embora algumas das peças expostas incluam elementos islâmicos, uma análise atenta revela que, na sua maioria, são objectos produzidos em territórios cristãos com influências muito diversas. Destacam-se, por exemplo, um conjunto de 63 pratos de reflexo metálico, de produção valenciana (séc. XV-XVIII) e uma selecção criteriosa de 86 azulejos provenientes das reservas do palácio, alguns dos quais mostrados ao público pela primeira vez, bem como contadores indo-portugueses, louceiros com madeira tropical e porcelanas sino-europeias. Já no núcleo arquitectónico, que inclui outras salas construídas no mesmo período, nomeadamente as denominadas Câmaras de D. João III, sobre as quais ainda não foi possível apurar qualquer informação, tentou-se dar continuidade à reflexão sobre a memória. Entre as peças expostas, encontram-se retratos, arcas de enxoval passadas de geração em geração, insígnias e contadores para guardar escrituras de propriedade. “Ainda não perdemos a esperança de desvendar mais sobre as câmaras, mas achámos pertinente reflectir também sobre como a nobreza portuguesa tentou preservar a sua própria memória.”
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