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Patrícia Reis começou a sua carreira jornalística aos 17 anos, no semanário O Independente, e ainda hoje, aos 53, já longe do dia-a-dia das redacções, se sente jornalista. “Alguém que observa o mundo, escuta de uma forma activa e procura informação numa base multidisciplinar”, diz, à laia de apresentação, antes de confessar que – apesar de contaminada por “afecto, respeito e admiração” – foi assim, “numa perspectiva jornalística”, que procurou encarar o privilégio de capturar quem ainda é a escritora, poetisa e feminista Maria Teresa Horta. Uma tarefa que nunca poderia ter sido fácil, como sugere o título da biografia que assina. Já nas livrarias, A Desobediente é resultado de centenas de horas de entrevistas e de um sem-número de artigos de jornais e teses académicas, mas lê-se como um romance, honesto e em desequilíbrio, como a figura que ilumina.
Maria Teresa Horta nasceu em Lisboa, onde frequentou a Faculdade de Letras. Escritora e jornalista, estreou-se na poesia em 1960, com Espelho Inicial, mas foi com Minha Senhora de Mim (1971) que escandalizou uma nação puritana e com o revolucionário Novas Cartas Portuguesas (1974), que escreveu a seis mãos com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, que reivindicou o direito da mulher a ter corpo e pensamento. Considerada uma das mais destacadas feministas da lusofonia, foi também a primeira mulher a exercer funções dirigentes no cineclubismo em Portugal. Aos 86 anos (faz 87 em Maio), a única d’As Três Marias viva continua a escrever diariamente e a ser militante e desobediente. E é sua a última biografia que Patrícia Reis escreve.
“Porque não consigo mais”, afiança. “O mergulho na obra da Maria Teresa Horta foi muito intenso, uma concentração ímpar. Não foi uma leitura ou releitura por puro prazer, mas para tentar encontrar o fio condutor, onde é que se encaixa o quê da vida da Maria Teresa naquela altura em que escreveu este poema, publicou este livro”, conta Patrícia Reis, que não esconde ter sido árduo e moroso biografar a autora, até porque, como confessa na nota introdutória, a tristeza de Maria Teresa também se impregnou nela com o passar do tempo. “Se me perguntarem ‘vai continuar a ler Maria Teresa Horta?’, claro que sim, que vou: a Maria Teresa é uma grande poetisa e uma ficcionista de mão-cheia, um gigante incontornável na história da literatura portuguesa do século XX. Mas, se calhar, agora preciso de me afastar.” Só um pouco, claro; não o suficiente para perder uma oportunidade de a recomendar.
Encontrámo-nos na Livraria Bertrand, no centro comercial Amoreiras. Patrícia Reis aceitou o desafio de montar uma pilha de livros para a próxima edição da revista Time Out Lisboa e a Paixão de Maria Teresa Horta surge entre os títulos seleccionados. A sua poesia não foi a primeira que a desassossegou (esse feito é de Mário Sá Carneiro, “o poeta ideal para a adolescência, esse período em que morremos e nascemos várias vezes no mesmo dia”), mas Maria Teresa é um exemplo (e uma amiga exemplar) há muitos anos. Conheceram-se num evento literário e a empatia imediata sagrou a admiração que já sentia pela sua voz pioneira, activista e inquebrantável. “É um facto que é uma mulher importantíssima para nós, mulheres jornalistas, e para nós, homens e mulheres feministas, que percebem que essa é uma causa que, tendo andado muito, continua a ter muito por onde andar.”
O feminismo de Maria Teresa Horta – que deve à sua avó Camila, que a levava às reuniões das sufragistas ainda era muito pequena – não é quem ela é, mas explica muitas das suas escolhas e vicissitudes. “Temos imensas escritoras surpreendentes, inventivas, inovadoras, diferenciadas, mas as mulheres ainda hoje não têm o mesmo peso literário que os homens”, lamenta Patrícia, que no livro nos dá a conhecer uma “multiplicidade de Teresas”, todas unidas por um único ideal, o da liberdade, que sempre reivindicaram e nem sempre conseguiram. A revolta (Patrícia chama-lhe “motim permanente”) que isso aporta é clara desde a primeira parte de A Desobediente, que aborda a infância, a adolescência e os primeiros anos de Maria Teresa como jovem adulta. Depois somos convidados a perceber o preço de tudo isso, como não foi fácil colher os frutos do seu talento.
A biografia de Maria Teresa Horta é o sexto volume da colecção de Biografias de Grandes Figuras da Cultura Contemporânea (Contraponto), mas o primeiro que envolve directamente, por meio de dezenas de conversas, a própria personalidade biografada. Quando Patrícia nos fala das adversidades profissionais e pessoais de Maria Teresa, é Maria Teresa que nos fala. A vida do avesso aos nove anos, quando a mãe abandonou a casa de família por causa de “um absurdo-nada” (apesar da mágoa, perceberia mais tarde que Carlota estava apenas a libertar-se). O fantasma de Moreira Baptista, antigo director do Secretariado Nacional de Informação do Estado Novo, que permaneceria uma constante ameaça. O olhar sempre vigilante e acusatório do pai. A PIDE à porta. Homens a acusarem-na de ser mal-criada por ter uma voz e não ter medo de a usar. O tratamento distinto nas redacções. O desdém por ser mulher e ser “chata”.
“Não há escritores que não sejam sensíveis ao mundo. Um escritor é por definição alguém sensível, capaz de sentir porventura um bocadinho mais do que a maioria”, partilha Patrícia, que já intuía a sensibilidade da sua biografada quando se meteu “nisto” a convite de Rui Couceiro. O editor da Contraponto sabia da dissertação de mestrado que Patrícia Reis estava a escrever sobre a influência das narrativas bíblicas na poética de Maria Teresa Horta. “Fomos almoçar e ele perguntou-me o que eu achava. Fazia todo o sentido para mim, até porque tudo o que possa ajudar à promoção da obra e da vida da Teresa é justíssimo. Eu sou uma enorme admiradora de um livro que a Teresa tem, chamado Anunciações, em que ela subverte tudo e põe Maria a ter sexo com o anjo Gabriel e Deus furioso. Já As Luzes de Leonor é uma obra-prima em que tudo se mistura, o diário, a poesia, a ficção, o manifesto, está lá tudo.”
Se não tivesse mais que fazer, desconfiamos que Patrícia Reis seria incapaz de resistir a falar-nos sobre Maria Teresa Horta durante um dia inteiro. “Acho que ela, como tantas outras autoras de quem eu gosto, sente o dobro daquilo que sentem as outras pessoas”, revela-nos, deslumbrada com “a capacidade de ver os móveis no ar”, um excesso de imaginação de que também padece. “Foi a tarefa mais difícil da minha vida profissional, mas ao mesmo tempo, neste momento, aquilo que eu tenho é uma sensação de alívio. Ela merece que percebam a importância, a inovação, o pioneirismo, a coragem, o não compromisso com nada a não ser os seus ideais e valores. Como poderia, como tantas pessoas fizeram, calar, ajeitar-se, encaixar-se e seguir no mesmo carril que toda a gente, e nunca o fez. Isso é admirável. Mas a Teresa é um ser humano, não é um anjo, e ninguém aprecia uma mulher em Portugal que não se cala, que tenha memória e convicções.”
A Desobediente – Biografia de Maria Teresa Horta, de Patrícia Reis. Contraponto. 424 pp. 20,90€
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