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“Devo dizer uma coisa: eu não gosto muito dos anos 80”, revela Pedro Boucherie Mendes. A frase é controversa se tivermos em conta que foi proferida pelo autor de um livro intitulado A Década Prodigiosa – Crescer em Portugal nos anos 80. Ficámos intrigados. “Não gosto muito da música dos anos 80”, esclarece. Estamos a falar da década imperial de Madonna, U2 e Michael Jackson, da pop inteligente de Blondie e Talking Heads, da ascensão dos sintetizadores e das caixas de ritmos sobre as guitarras, do boom do rock português. Porquê, então, escrever um livro sobre essa época? “Aquela era uma era de tecnologia. Ou seja, é uma era em que a tecnologia, nomeadamente os sintetizadores, permitem fazer música de outra maneira. E isso muda tudo, sobretudo para os produtores”, diz.
Mas não é só de música que trata o seu novo livro. Na verdade, começou por ser uma homenagem a duas pessoas que, na opinião do actual director de Planeamento Estratégico e Conteúdos Digitais de Entretenimento da SIC, cargo que acumula com o de director da SIC Radical, são “fundacionais para a democracia portuguesa”: o humorista Herman José (“aquele que primeiro triunfou no Portugal democrático”) e o escritor e cronista Miguel Esteves Cardoso, figura de vanguarda nos jornais de então. “São pessoas que fazem as coisas andar para a frente, estão viradas para a frente, e isso cria o combustível certo para vitaminar o país e a democracia”, defende. Com o tempo, e depois de várias conversas com protagonistas da época, percebeu que era preciso dar “imenso contexto”. “Acabei por fazer um livro que englobasse a transformação que os portugueses sofreram, sobretudo, os jovens portugueses”, diz ainda. “Por isso é que o livro não é sobre os anos 80, é sobre crescer nos anos 80 em Portugal”.
Publicado em Setembro de 2024 pela editora Dom Quixote, o livro relata um período charneira para Portugal, em que o país se deparava com grandes mudanças a nível social, cultural e económico. A adesão à CEE, a primeira maioria absoluta de Aníbal Cavaco Silva, a abertura do centro comercial Amoreiras em Lisboa – e de uma ideia mais aguerrida de consumismo (vulgo capitalismo) em Portugal, por consequência – são alguns dos acontecimentos que Pedro Boucherie Mendes relata com detalhe historiográfico ao longo de quase 700 páginas. “Apercebi-me que muitos acontecimentos muito importantes na vida portuguesa decorrem a meio. Por exemplo, o Cavaco Silva é eleito a meio da década — há uma década com Cavaco e uma sem Cavaco”.
Assim, decidiu “dar a ordem ao que fazia pelos olhos de um miúdo no início da década”, até à entrada na universidade, depois, já no fim da década. “Houve uma série de acontecimentos que parece que se passaram todos na mesma altura, mas que acontecem entre o final de 89 e o final de 92. Decidi incluí-los no livro porque acho que são importantes para compreender [aquela década]. Ainda têm um aroma forte a anos 80”.
Portugal era “um estaleiro”
A partir das rádios e dos televisores (nunca é demais referir que os computadores pessoais ainda não tinham chegado à maioria das casas dos portugueses, e que a internet era ainda um conceito a anos-luz de distância), Portugal assistia a uma série de momentos cruciais na história do século XX: a queda do Muro de Berlim em 1989 (“o acontecimento principal da década, porque assinala o fim do Império Soviético”, afirma Boucherie Mendes), a libertação de Nelson Mandela uns meses depois e a reunificação da Alemanha nas semanas seguintes. Em 1991, Portugal entrava na nova década com a segunda maioria de Cavaco Silva. “Os governos do Cavaco perceberam que as pessoas querem ter coisas, querem ter carros e querem ter coisas para dar aos putos”, diz. “É o capitalismo, é o consumismo, é o materialismo? Pronto, fixe. Mas é o que as pessoas querem”.
Mesmo jovem (tinha 11 anos quando entrou na década de 1980), Pedro Boucherie Mendes tinha plena consciência das limitações daquele tempo. Portugal, como refere a dada altura no livro, era “um estaleiro” e carecia ainda de escolas, estradas, saneamento, casas e iluminação. Era perigoso andar na estrada, a escolaridade era baixa e os níveis de analfabetismo elevados. Emprego, recorda, “só com cunha”. “Quando digo que não gosto muito dos anos 80, é porque o mundo agora é muito melhor para quem é jovem, apesar de os jovens não compreenderem”, esclarece durante a entrevista. “Com o Cavaco Silva – e com a adesão à União Europeia, claro – Portugal passa a ter uma classe média significativa”.
Ao mesmo tempo, ser-se jovem naqueles dias era viver sob uma certa sensação de aborrecimento constante. “O tédio tem a ver com a vida de uma pessoa desocupada e despreocupada, em jovem ou em velho. Nesse sentido, nós tivemos uma vida entediada porque não havia Playstation, não havia computadores, não havia séries para ver. Não havia Netflix, não tínhamos um portátil”, conta, reconhecendo, no entanto, que “o tédio é uma conquista da civilização”. “É um luxo porque os miúdos que trabalhavam na revolução industrial, nos teatros em Manchester e em Liverpool, e que trabalhavam às vezes 16 horas por dia, não tinham tempo para ficar entediados, não é? Ou os camponeses em Portugal, nos anos 50, a cavar a terra o dia todo, também não tinham tempo para ficar entediados. Cavavam, bebiam um litro de vinho e iam dormir”.
A década prodigiosa
São muitos os factores que, na visão de Pedro Boucherie Mendes, contribuíram para uma certa mitificação dos anos 80. Os avanços da tecnologia, como dizia no começo, é uma delas. “Os anos 80 têm essa libertação toda com a tecnologia, e a tecnologia faz de facto diferença e melhora a vida das pessoas”, nota. Só naquela década, chegavam a Portugal os primeiros micro-computadores (como o ZX Spectrum), a televisão a cores, o walkman, o vídeo-gravador e as rádios pirata. Lá fora, uma pequena revolução chamada MTV impulsiona a disseminação do teledisco. “A música passa a ser visual. Isso faz nascer uma explosão de linguagens diferentes, de referências e de heróis e de protagonistas diferentes”, nota Pedro Boucherie Mendes. “Não podia haver uma Madonna antes porque ela não se podia exprimir visualmente”, reforça.
Na moda, os Swatch, os keds e o gel para o cabelo tornam-se tendência entre os jovens. Os carros tornam-se mais pequenos e utilitários, muito devido à crise do petróleo da década de 70, e há cada vez mais gente a tirar a carta (“é uma coisa muito deste tempo, dos anos 80 em Portugal”, recorda). Outra conquista do tempo é a emancipação da mulher. “Nós somos a primeira geração a não achar que as raparigas têm que estar em casa a lavar a louça”, afirma. “Para mim, nunca houve diferença entre um rapaz e uma rapariga”.
“Depois, [havia] a sensação de que Portugal contava – fazias parte da equipa vencedora”, continua. “Isso é uma coisa que eu refiro muito no meu livro: tu dás por ti a acabar a década com a taça na mão. Porque o Muro de Berlim cai, e tu estás do lado certo, do lado do bloco americano que ganhou ao bloco soviético. Portanto, os portugueses também têm uma mão na taça – ganharam”, afirma. “Acho que essa mitificação também tem a ver com isso”.
De Pedro Boucherie Mendes. Dom Quixote. 652 pp. 29,90€
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