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É provavelmente um dos clássicos com mais adaptações ao grande ecrã, inclusive pelos estúdios Disney, na clássica animação de 1940 e no mais recente live-action de Robert Zemeckis, que estreou em Setembro passado. Ainda antes, em 2019, foi lançada a versão neo-realista de Matteo Garrone, também com actores de carne e osso, mas muito mais próxima da história original. Agora, com estreia na Netflix a 9 de Dezembro, chega-nos a visão gótica de Guillermo del Toro, que há muito sonhava em dar vida ao famoso rapaz de madeira. Mas não exactamente o de As Aventuras de Pinóquio, que Carlo Collodi nos deu a conhecer em 1883. Apesar da homenagem ao jornalista e escritor italiano estar lá – no nome do filho que Geppetto perde no prólogo desta reinvenção do clássico infantil –, o primeiro filme de animação do realizador mexicano, um musical em stop-motion para maiores de 12 anos, leva-nos até à Itália fascista dos anos 1930 para nos contar uma história sobre humanidade, o vínculo entre pais e filhos e, claro, os perigos, mas sobretudo as virtudes da desobediência, especialmente numa época em que todos parecem comportar-se como marionetas.
O projecto foi anunciado em 2008 e a estreia estava prevista para 2013 ou 2014, mas Pinóquio de Guillermo del Toro (o título é mesmo este) esteve no limbo durante anos. Em Janeiro de 2017, Patrick McHale juntou-se à equipa para co-escrever o argumento com del Toro, mas a produção foi novamente suspensa em Novembro desse ano, porque nenhum estúdio estava disposto a financiá-la. Um ano mais tarde, foi retomada graças à Netflix, que adquiriu os direitos. Na altura, Guillermo del Toro, que assina a realização com o animador Mark Gustafson, confidenciou em várias entrevistas que sempre quis fazer este filme: “Nenhuma expressão artística influenciou mais a minha vida e o meu trabalho do que a animação e nunca me senti tão conectado com nenhuma personagem como com a de Pinóquio.”
Foi a sua mãe que o apresentou à personagem quando ainda era criança. Infelizmente, a estreia mundial decorreu um dia depois da sua morte, a 14 de Outubro. “Só quero dizer que a minha mãe acabou de morrer e isto foi muito especial para ela e para mim”, disse. “[A animação da Disney, de 1940] afectou-me, porque o Pinóquio via o mundo como eu o via. Fiquei um pouco zangado com o facto de todos exigirem a obediência de Pinóquio, por isso o que quis fazer foi um filme sobre a desobediência como virtude, que dissesse que não devíamos ter de mudar [quem somos] para ser amados.”
As gravações duraram mil dias, uma vez que foi preciso manipular os diferentes personagens quadro a quadro, para criar a ilusão de movimento, que del Toro quis o mais naturalista possível. O elenco de vozes (na versão original, em inglês) inclui o novato Gregory Mann, que tinha dez anos quando foi escolhido para o papel de Pinóquio, em 2020; bem como actores com que o realizador já tinha trabalhado antes, nomeadamente David Bradley (The Strain), Ron Perlman (Hellboy) e Cate Blanchett (Beco das Almas Perdidas), que interpretam Geppetto, o fascista Podestà e o macaco Spazzatura, respectivamente. Já a interpretar o Conde Volpe, o mestre de cerimónias do circo, temos Christoph Waltz. A Fada Azul, nesta versão um espírito da floresta, é Tilda Swinton, que também faz de uma espécie de guardiã do além. Ewan McGregor é Sebastian Jr. Cricket e, como seria de esperar, é precisamente o sempre charmoso grilo falante – este em específico com vontade de assentar e escrever as suas memórias – que assume o papel de narrador. A história, essa, começa muito antes de Pinóquio, quando o carpinteiro Geppetto tinha um filho de verdade, o que quer que isso queira dizer. Carlos, assim se chamava, era um bom menino. Ia à escola, acompanhava o pai no seu trabalho e evitava traquinices no geral. Quando o perde, na sequência de um desastre de guerra, Geppetto fica destroçado.
Não é a primeira vez, nem será de certo a última, que del Toro cria fábulas para denunciar o fascimo e retratar a tensão da guerra – fê-lo, por exemplo, em longa-metragens como Nas Costas do Diabo (2001) e O Labirinto do Fauno (2006), ambas ambientadas na ditadura espanhola de Francisco Franco (1939-1975). Mas pareceu-lhe de facto pertinente traçar paralelos directos com os dias de hoje, cada vez mais assombrados pelo declínio dos regimes democráticos e pela ascensão do autoritarismo em todo o mundo. E quão simbólico é ver Pinóquio – construído numa noite de tempestade por um Geppetto atormentado e irreconhecível – a questionar a realidade, e a agir muito pouco como uma marioneta. É assim que, por entre momentos musicais e cenas dramáticas, umas a puxar a lágrima, outras o riso, a sua veia desobediente nos inspira a abraçar a liberdade, a imperfeição e a brevidade da vida, por um lado; e, por outro, a reflectir sobre diferentes tipos de paternidade – o que é ser pai, o que é ser filho – e como o fascismo se apropriou do conceito de pátria (fatherland, em inglês) e da autoridade da figura paterna, de repente virada do avesso, violenta e manipuladora.
Claro que um conto de fadas não é um conto de fadas sem um final feliz, ainda que subversivo. Afinal, apesar de Pinóquio não ser de carne e osso, é de verdade: fala, pensa, movimenta-se, sente. Será realmente preciso deixar de ser quem é – de madeira, feito de angústia, amor e alguma revolta paterna – para ser um menino a sério? É verdade que o seu espírito intempestivo começa por assustar e, depois, arreliar Geppetto, mas ser pai também é isso: perceber que os nossos filhos não são criações nossas, são as suas próprias pessoas, com ideias, desejos e inquietações, muitas inquietações. E que essas inquietações não podem nem devem ser reprimidas, que fazem deles quem eles são.
Netflix, 9 Dez
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