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Podcasts para crianças. “É preciso criar o hábito”

Não há falta de podcasts a pensar nos mais novos, mas o número de ouvintes ainda é miudinho. Para perceber porquê, pusemo-nos à escuta e fizemos perguntas a quem percebe do assunto.

Raquel Dias da Silva
Jornalista, Time Out Lisboa
Bem Mais Que Uma História
© Teresa TorresBem Mais Que Uma História
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Este artigo foi originalmente publicado na revista Time Out Lisboa, edição 669 — Primavera 2024.

Estavam na estrada, a viajar pela Europa, quando tiveram a ideia. Os filhos no banco de trás, o rádio do carro a funcionar e, voilá, a lâmpada acendeu-se. Foi assim que Sara e Francisco Alves, emigrantes portugueses na Suíça, deram à luz o Só Mais Uma História, que entretanto mudou de nome para Bem Mais Que Uma História. O podcast, que estreou a sua primeira temporada em Dezembro e deverá anunciar a terceira ainda este ano, convida todas as famílias a resistirem ao elã dos ecrãs e da internet. Na rua, em andamento, ou no quarto, antes de ir dormir, temos oportunidade de, durante pouco mais de dez minutos de cada vez, deixarmos a nossa imaginação voar com fadas, princesas e vulcões. “Temos três filhos – os gémeos têm dez anos e o mais novo cinco – e sempre ouvimos histórias com eles [em francês]. Mas, quando decidimos procurar em português, não encontrámos nada que gostássemos tanto.” Talvez porque, apesar da oferta ser farta, o investimento seja pouco. A razão, desconfiamos, é a procura. E a questão é porquê.

“Em Portugal, parece haver uma tendência, que tentámos contrariar, para podcasts mais tradicionais”, começa por apontar Francisco, que procurou investir na produção. Por um lado, com a narração e interpretação dos seus textos pela mulher, Sara, que podia ter feito carreira a dobrar desenhos animados; e, por outro, através dos efeitos sonoros e da música, que ora escolhe a partir de repertório clássico, ora compõe ele mesmo. Este cuidado – que garante a originalidade e o ritmo da acção – é essencial para agarrar ao primeiro ouvido. Mas as audiências ainda são miudinhas, admite. Nos primeiros seis meses, o número de ouvintes rondava as 40 pessoas e ainda só reuniram 15 ratings no Spotify (todos cinco estrelas). Não é caso único. O quase homónimo Só mais uma estória, da Renascença, que estreou em Março de 2023, tem apenas 65 ratings (também cinco estrelas), apesar de estar entre os podcasts de histórias mais populares e ser, aliás, o único para miúdos a entrar na categoria.

Para Sara e Francisco, é genuinamente difícil perceber a aparente falta de interesse em podcasts infanto-juvenis, sobretudo quando há tantos (só a rádio ZigZag tem mais de 70 programas, todos disponíveis para ouvir no Spotify e em aplicações de podcasts como a da Apple e a da Google). “De vez em quando recebemos um ou outro e-mail que nos dá alento, mas não podemos obrigar as pessoas a gostar. Agora, sem publicidade, também só crescemos o que é possível crescer dessa forma. Não investimos ainda, porque a produção já nos consome bastante tempo”, justifica Francisco, antes de defender que, provavelmente, o problema não é as famílias não quererem ouvir, é lá chegarem. Primeiro, o público não tem muitas vezes idade para, sozinho, decidir carregar no PLAY. Depois, quem tem de facto poder de decisão tem um grande desafio pela frente: a azáfama do dia-a-dia, que retira tempo livre e, pior, o prazer da exploração.

“Hoje em dia, há sobre-estimulação com rotinas de televisão muito solidificadas”, alerta Rita Figueiredo, que tem formação certificada em neuroeducação e neuroplasticidade, pela High Performance Brain, e chegou a partilhar vários dos seus “neurocontos” no PÓ de Luz. O podcast de 20 episódios é, explica, uma amostra do seu trabalho como criadora e gestora de projectos de crescimento saudável. “O áudio só é menos apelativo porque há menos predisposição. Se já existir, por exemplo, a tradição de contar uma história ao adormecer, é fácil introduzir noutros momentos do dia. Caso contrário, é muito difícil, sobretudo se estivermos a falar de crianças que já estão habituadas a usar um tablet e a pôr a dar o que lhes apetece. Para as convencer a trocar uma coisa pela outra, é preciso alguma persistência e noção de linguagem. Muitas vezes, o sucesso ou não [do entretenimento fora do ecrã] depende sobretudo da disponibilidade do adulto.”

É preciso formar público

Em Portugal, ainda não somos todos ouvidos. Ao contrário do que acontece em países como França, Reino Unido e EUA, o mercado dos produtos áudio, que inclui audiolivros e podcasts, não está ainda consolidado, embora se esteja a popularizar entre certas faixas etárias, que apreciam a companhia enquanto fazem desporto, cozinham o jantar ou regam as plantas. Quem o diz é Pedro Sobral, presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros e administrador do grupo LeYa. “As ideias nem sempre se concretizam em audiência. Assumimos que é grande, mas na esmagadora maioria das vezes isso não acontece. O potencial do áudio e do podcast em particular tem a ver com o multitasking, porque as pessoas utilizam o mesmo tempo para fazer mais coisas, incluindo ouvir conteúdos. Mas ainda há resistência. Posso dizê-lo com naturalidade porque também sou pai. Ao final do dia, estamos cansados”, confessa, antes de adiantar que, apesar disso, é uma questão de hábito.

Tanto é uma questão de hábito, reforça Pedro Sobral, que os países onde o consumo de áudio mais cresce são aqueles que têm uma longa tradição desde o tempo “das famosas cassetes e depois dos famosos CDs”. “Há uma série de gerações [lá fora] que já estão habituadas a esses conteúdos e, hoje em dia, como pais ou como cuidadores, é-lhes natural. Em Portugal, nunca tivemos mercado. Houve umas tentativas, nos anos 80, com cassete. Depois alguns CDs, que eram caros. O que significa que agora ainda estamos a criar o hábito e é preciso criar o hábito primeiro nos adultos, e depois então envolver os seus filhos, enfim, as pessoas de quem cuidam, os menores de idade.” E, como os podcasts não são caros de produzir, são relativamente fáceis de implementar e estão disponíveis gratuitamente e de forma acessível, é bom haver quem queira investir em fazer.

“Até aos primeiros dois anos de vida, as crianças não devem ter contacto nenhum com ecrãs, porque o nosso cérebro está formatado para se desenvolver através da relação natural com o exterior”, diz Rita Figueiredo. “Os miúdos ficam viciados em televisão por causa da velocidade das imagens, que força a manter o olhar e dá a falsa impressão de que estão a descansar porque estão quietos. Não é verdade, por isso é que, depois, ficam irritados quando voltam a um estado de equilíbrio: o cérebro não é capaz de abrandar”, continua, antes de enumerar os benefícios do exercício da escuta activa. “É uma excelente alternativa, sobretudo se o adulto estiver disponível para ouvir com a criança e para criar um momento de conexão em torno da actividade. É a oportunidade perfeita para ouvir o corpo, parar e tentar perceber o que sentem, as primeiras sensações de que ficam conscientes. Acontece-nos o mesmo quando estamos só a ouvir música, focamo-nos mais no que estamos a ouvir e a sentir.”

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