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Poder, linguagem e escravatura. Grada Kilomba quer reescrever a história

A artista portuguesa trouxe um barco para terra numa dolorosa, mas poética, evocação de séculos de escravatura. Para visitar até 17 de Outubro.

Mauro Gonçalves
Escrito por
Mauro Gonçalves
Editor Executivo, Time Out Lisboa
"O Barco", de Grada Kilomba
Pedro Machado
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A escala da obra impõe-se, mesmo a céu aberto. A partir desta sexta-feira, "O Barco" de Grada Kilomba está atracado junto à bilheteira da antiga Central Tejo. À beira-rio, mas em solo firme, o porão estende-se por 32 metros, composto por dezenas de blocos de madeira, dispostos da mesma forma que os escravos negros foram acomodados ao longo de séculos, a bordo das principais rotas mercantes com destino à Europa e às Américas.

Pesados e imóveis, os toros deixam um passado esclavagista a descoberto, um gatilho para questionar a história, a linguagem, a arquitetura e a violência instaurada durante vários séculos de domínio colonial. Mesmo para o transeunte mais incauto -- sem uma noção prévia dos temas que ocupam a agenda desta artista portuguesa radicada em Berlim --, esta é uma instalação agridoce, tão incómoda quanto maravilhosa.

"Trabalho sempre com a emoção, mas também com temas extremamente violentos e dolorosos, com feridas, com dores e com trauma. Uma das coisas que mais me fascina é o contraste: produzir imagens e linguagens extremamente poéticas para lidar com essa violência. E com esse contraste é possível entrar dentro do interior das pessoas, de todas as pessoas", descreve Grada, em conversa com a Time Out Lisboa.

"O Barco", de Grada Kilomba
Pedro Machado

Kilomba quis que esta obra nascesse em Lisboa, apesar dos convites para desenvolver o projeto em Itália e em Nova Iorque. Recusou-os e regressou à cidade onde cresceu e que, em 2019, a convidou a conceber um memorial às vítimas da escravatura. "O Barco" nasceu aí, embora tenham sido as canas de açúcar de Kiluanji Kia Henda a instalação escolhida para o renovado Campo das Cebolas.

O movimento Black Lives Matter viria um ano depois, acendendo o debate em torno de símbolos coloniais e esclavagistas espalhadas pelo mundo ocidental. Lisboa não fica de fora desta reflexão, pelo contrário. "Como é que caminhamos por tantas cidades na Europa e continuamos a ver parte da história apagada? Em Lisboa, a escravatura continua a estar gravada em vários monumentos e sempre com uma entoação de glória. Como é que se apagam quase 500 anos de história, mantendo apenas a ponta o iceberg à vista e tudo o resto escondido debaixo de água?", reflete a autora.

Aqui, numa interpretação do "glorioso barco", Grada propõe-se a reescrever a história a partir dos trechos suprimidos. "Somos acusados de estar sempre a falar em escravatura. Pois bem, esta história -- esta ferida -- nunca foi bem contada. E quando isso acontece, a história repete-se", continua.

Racismo, homofobia e misoginia têm sido pontos pontos fulcrais no discurso artístico de Grada Kilomba. Nos corpos depositados no porão revê a mesma noção de hierarquia humana que já tinha trabalhado quando explorou o clássico "Antígona" em 2020. Um caminho que a leva a questionar edifícios e monumentos, mas também a própria linguagem -- "Descobrimentos? Um continente com milhões de pessoas não pode ser descoberto".

"O Barca", de Grada Kilomba
Pedro Machado

A palavra surge inesperadamente entre os pedaços de madeira enegrecidos pelo fogo. O poema, escrito em seis línguas, está gravado a ouro em 18 dos blocos. Foi o culminar de um trabalho físico exigente. Na região de Alcácer do Sal, a artista reuniu os 140 blocos de madeira. Em dois buracos escavados no solo, queimou-os ao de leve e mergulhou-os na água. Repetiu o processo consecutivamente até que todos assumissem texturas singulares. "Cada uma destas peças emana emoção. Elas têm uma pele, uma ferida, uma cicatriz", detalha.

A partir de uma arqueologia do passado, Kilomba reescreve a história hoje e ocupa o espaço com uma obra que remete para o amanhã. "Todas estas questões são do futuro da mesma forma que todos os corpos oprimidos são corpos futuristas. Todas as comunidades marginalizadas e que reclamam a igualdade -- e estou a falar de Black Lives Matter, de LGBTQI, do movimento feminista -- trazem questões que não podem ser produzidas na normatividade, só podem ser produzidas nas margens. É sempre um discurso futurista com o qual o centro ainda não consegue lidar, há um desfasamento de tempo. O que nós oferecemos aqui é uma grandiosidade futurista para interromper o presente", admite.

Com "O Barco", Grada abre a nova temporada do MAAT e mais uma edição da Bienal de Arte Contemporânea BoCA. No mesmo dia em que inaugura esta obra ao ar livre, a artista envolve-a numa performance de 45 minutos dividida em três atos, marcada para o final da tarde. Kalaf Epalanga assina o momento na qualidade de produtor musical. Elementos de comunidades afro-descendentes são as peças centrais, entre músicos e bailarinos, num total de 35 pessoas. Depois da sessão inaugural, a performance irá repetir-se em duas datas: 25 de Setembro (às 17.00) e 17 de Outubro (às 16.00).

"Cada obra que faço vai para além das minhas capacidades. Trabalho muito com o risco e com o desconforto. Trabalho coisas com as quais estou preocupada. Acho importante esta constante reinvenção, não trabalhar no conforto. E um barco de 32 metros é realmente sair da minha escala", afirma.

Com "O Barco" exposto à cidade e ao mundo, abre-se agora espaço para a reflexão e para o debate em torno do legado colonialista e dos seus vestígios. Um tema que já se revelou inflamável, em Portugal e no resto do mundo ocidental. A Artista distancia-se de reações e resistências ao tópico proposto. "Cheguei a um ponto da minha carreira em que não estou preocupada com a forma como o meu trabalho é recebido. Estou preocupada com as lágrimas, as alegrias e os abraços das muitas pessoas que precisam e querem ter obras como estas e que me mandam centenas de cartas de amor. Não me ocupo com o contratempo, ocupo-me com o tempo", remata.

A obra "O Barco" pode ser visitada gratuitamente até 17 de Outubro, junto à antiga Central Tejo, em Belém, entre as 10.00 e as 22.00.

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