[title]
A escala da obra impõe-se, mesmo a céu aberto. A partir desta sexta-feira, "O Barco" de Grada Kilomba está atracado junto à bilheteira da antiga Central Tejo. À beira-rio, mas em solo firme, o porão estende-se por 32 metros, composto por dezenas de blocos de madeira, dispostos da mesma forma que os escravos negros foram acomodados ao longo de séculos, a bordo das principais rotas mercantes com destino à Europa e às Américas.
Pesados e imóveis, os toros deixam um passado esclavagista a descoberto, um gatilho para questionar a história, a linguagem, a arquitetura e a violência instaurada durante vários séculos de domínio colonial. Mesmo para o transeunte mais incauto -- sem uma noção prévia dos temas que ocupam a agenda desta artista portuguesa radicada em Berlim --, esta é uma instalação agridoce, tão incómoda quanto maravilhosa.
"Trabalho sempre com a emoção, mas também com temas extremamente violentos e dolorosos, com feridas, com dores e com trauma. Uma das coisas que mais me fascina é o contraste: produzir imagens e linguagens extremamente poéticas para lidar com essa violência. E com esse contraste é possível entrar dentro do interior das pessoas, de todas as pessoas", descreve Grada, em conversa com a Time Out Lisboa.
Kilomba quis que esta obra nascesse em Lisboa, apesar dos convites para desenvolver o projeto em Itália e em Nova Iorque. Recusou-os e regressou à cidade onde cresceu e que, em 2019, a convidou a conceber um memorial às vítimas da escravatura. "O Barco" nasceu aí, embora tenham sido as canas de açúcar de Kiluanji Kia Henda a instalação escolhida para o renovado Campo das Cebolas.
O movimento Black Lives Matter viria um ano depois, acendendo o debate em torno de símbolos coloniais e esclavagistas espalhadas pelo mundo ocidental. Lisboa não fica de fora desta reflexão, pelo contrário. "Como é que caminhamos por tantas cidades na Europa e continuamos a ver parte da história apagada? Em Lisboa, a escravatura continua a estar gravada em vários monumentos e sempre com uma entoação de glória. Como é que se apagam quase 500 anos de história, mantendo apenas a ponta o iceberg à vista e tudo o resto escondido debaixo de água?", reflete a autora.
Aqui, numa interpretação do "glorioso barco", Grada propõe-se a reescrever a história a partir dos trechos suprimidos. "Somos acusados de estar sempre a falar em escravatura. Pois bem, esta história -- esta ferida -- nunca foi bem contada. E quando isso acontece, a história repete-se", continua.
Racismo, homofobia e misoginia têm sido pontos pontos fulcrais no discurso artístico de Grada Kilomba. Nos corpos depositados no porão revê a mesma noção de hierarquia humana que já tinha trabalhado quando explorou o clássico "Antígona" em 2020. Um caminho que a leva a questionar edifícios e monumentos, mas também a própria linguagem -- "Descobrimentos? Um continente com milhões de pessoas não pode ser descoberto".
A palavra surge inesperadamente entre os pedaços de madeira enegrecidos pelo fogo. O poema, escrito em seis línguas, está gravado a ouro em 18 dos blocos. Foi o culminar de um trabalho físico exigente. Na região de Alcácer do Sal, a artista reuniu os 140 blocos de madeira. Em dois buracos escavados no solo, queimou-os ao de leve e mergulhou-os na água. Repetiu o processo consecutivamente até que todos assumissem texturas singulares. "Cada uma destas peças emana emoção. Elas têm uma pele, uma ferida, uma cicatriz", detalha.
A partir de uma arqueologia do passado, Kilomba reescreve a história hoje e ocupa o espaço com uma obra que remete para o amanhã. "Todas estas questões são do futuro da mesma forma que todos os corpos oprimidos são corpos futuristas. Todas as comunidades marginalizadas e que reclamam a igualdade -- e estou a falar de Black Lives Matter, de LGBTQI, do movimento feminista -- trazem questões que não podem ser produzidas na normatividade, só podem ser produzidas nas margens. É sempre um discurso futurista com o qual o centro ainda não consegue lidar, há um desfasamento de tempo. O que nós oferecemos aqui é uma grandiosidade futurista para interromper o presente", admite.
Com "O Barco", Grada abre a nova temporada do MAAT e mais uma edição da Bienal de Arte Contemporânea BoCA. No mesmo dia em que inaugura esta obra ao ar livre, a artista envolve-a numa performance de 45 minutos dividida em três atos, marcada para o final da tarde. Kalaf Epalanga assina o momento na qualidade de produtor musical. Elementos de comunidades afro-descendentes são as peças centrais, entre músicos e bailarinos, num total de 35 pessoas. Depois da sessão inaugural, a performance irá repetir-se em duas datas: 25 de Setembro (às 17.00) e 17 de Outubro (às 16.00).
"Cada obra que faço vai para além das minhas capacidades. Trabalho muito com o risco e com o desconforto. Trabalho coisas com as quais estou preocupada. Acho importante esta constante reinvenção, não trabalhar no conforto. E um barco de 32 metros é realmente sair da minha escala", afirma.
Com "O Barco" exposto à cidade e ao mundo, abre-se agora espaço para a reflexão e para o debate em torno do legado colonialista e dos seus vestígios. Um tema que já se revelou inflamável, em Portugal e no resto do mundo ocidental. A Artista distancia-se de reações e resistências ao tópico proposto. "Cheguei a um ponto da minha carreira em que não estou preocupada com a forma como o meu trabalho é recebido. Estou preocupada com as lágrimas, as alegrias e os abraços das muitas pessoas que precisam e querem ter obras como estas e que me mandam centenas de cartas de amor. Não me ocupo com o contratempo, ocupo-me com o tempo", remata.
A obra "O Barco" pode ser visitada gratuitamente até 17 de Outubro, junto à antiga Central Tejo, em Belém, entre as 10.00 e as 22.00.
+ Entre corpos e afectos, a BoCA pede-nos prova de humanidade