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“Pôr a cultura fora é um erro enorme que a cidade está a cometer”

Após um ano a reavivar um quartel devoluto de Lisboa, o LARGO Residências e mais de 30 projectos terão de sair, rumo à esperança de uma nova casa. Ainda há espaço para a cultura criar raízes? Fomos à procura de respostas.

Rute Barbedo
Escrito por
Rute Barbedo
Jornalista
Largo Residências
Francisco Romão Pereira/Time OutAlguns dos projectos no Largo do Cabeço de Bola
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“O que aconteceu aqui num ano foi de outra dimensão”, qualifica Marta Silva, fundadora e presidente do LARGO Residências. O LARGO foi o primeiro colectivo a entrar no devoluto quartel do Largo do Cabeço de Bola. Em 2020, procuravam um espaço para o festival Bairro em Festa e os portões abriram-se. Dois anos depois, a cooperativa achou que não faria sentido estar só num espaço de 22 mil metros quadrados. Chamou diversidade e vieram a Oficina do Cego (tipografia), as Manas (apoio a pessoas não-binárias ligadas ao trabalho sexual), o Colectivo Maker (laboratório de recriação e combate ao desperdício), a Eira (artes performativas) ou a Associação da Comunidade de Afegãos em Portugal (que apoia mais de mil refugiados), mas também artistas plásticos, gente da fotografia e do cinema. E ainda hoje chegam candidaturas. O resultado foi que, num ano, mais de 1000 profissionais se envolveram na realização de 900 actividades, entre exposições, concertos, cinema, almoços, mercados, festas, leituras e conversas. “Passaram por aqui pelo menos 50 mil pessoas. Foi tudo vivido até ao tutano”, descreve Marta.

Quando o LARGO aqui chegou, no entanto, sabia que a história não se escreveria para sempre. No lugar do quartel serão construídas habitações para arrendamento acessível. “No início, achávamos que íamos ficar dois ou três anos. Depois veio o PRR e acelerou tudo.” Ainda que com o fim próximo à vista (os residentes deverão ter de abandonar o espaço até ao final do ano), o quartel representou uma das raras possibilidades de o LARGO e outros residentes trabalharem em conjunto. Há uma “enorme necessidade de espaços de criação e de cultura na cidade”, evidencia a bailarina de formação. Ao mesmo tempo, “a cultura não acontece só nas instituições, nos teatros, nas salas fechadas. É preciso existir espaços como este”, reivindica Alexandre Cortez, da associação residente A Palavra, que não sabe o que irá acontecer quando tiverem de abandonar o Largo do Cabeço de Bola. Apesar de todas as pistas indicarem o extinto hospital Miguel Bombarda como o caminho a seguir – “estamos a fazer todos os esforços para isso e queremos mudar-nos em Janeiro”, avança Marta Silva –, certezas, não há. “Temos esperança de que este projecto maravilhoso continue, mas também somos obrigados a ter um plano B. Muitas pessoas estão a ser empurradas para fora, seja para o estrangeiro ou para zonas periféricas. Não temos nada contra a periferia. Se tivermos de ir para lá, vamos fazê-lo e com todo o empenho. Mas pôr a cultura fora é um erro enorme que a cidade está a cometer”, defende Alexandre.

A Palavra
Francisco Romão Pereira/Time OutA Palavra

Ter um lugar na cidade é, para muitos, uma condição inegociável. “Este é um trabalho que desenvolvemos no território e que demora anos. Quando fomos para o Intendente, em 2011, todos precisavam daquela transformação”, lembra Marta Silva. “A cultura é um activador, mas pode ser muito mais, pode criar cidade.” E uma das formas de o fazer, defende, é levando-a para a rua e para espaços informais como o quartel, os chamados “terceiros lugares”.

“Tudo o que uma cidade devia ser”

A necessidade de um espaço assim não é exclusiva da cultura. Para Andreia Salavessa, da cooperativa , os “momentos mais memoráveis” no quartel foram as oficinas com crianças. “É incrível como entram aqui pela primeira vez e parece que conhecem o espaço desde sempre. É um lugar amplo, onde não há carros e não se é julgado. É tudo o que uma cidade devia ser.” Por outro lado, a hipótese de, no final deste ano, cada residente seguir o seu caminho significa, para a arquitecta, um retrocesso. “É a diferença entre cada um estar na sua casa, em teletrabalho, ou viver em partilha permanente, para o mesmo fim”, diz. Paula Geleia, do Colectivo Maker, que aprendeu a usar a rebarbadora para transformar a garagem de pesados do quartel num espaço digno de trabalho, pergunta-se simplesmente: “O que se ganha em segmentar?”

Fechado ao público desde 2 de Outubro, o quartel foi um laboratório onde se experimentou “fazer a cidade” através do “acesso democrático à cultura”. No Bombarda, a missão será a mesma, pelo menos até ao dia de voltar a arrumar computadores e pincéis, até porque sobre os terrenos do antigo hospital psiquiátrico assenta um projecto que inclui habitação (a custos controlados), uma escola e um hotel.

Trabalhar com os 99%
Francisco Romão Pereira/Time OutTrabalhar com os 99%
Colectivo Maker
Francisco Romão Pereira / Time OutColectivo Maker

O Intendente chegou ao fim

Em dez anos, o Largo do Intendente mudou drasticamente. À boleia de obras públicas que custaram cerca de 11 milhões de euros, iniciativas como o festival Bairro em Festa, as residências artísticas no LARGO ou a vida efusiva da Casa Independente transformaram, a partir de 2012, uma zona onde se tinha medo de entrar num local de “convivência maravilhosa entre moradores, artistas e turistas”, diz um dos últimos sobreviventes daquele Intendente, o proprietário da loja Retrox Vintage, Frederico Lima. Hoje, o que sente uma boa parte dos agentes que ajudou a revitalizar esta zona da cidade é que o seu trabalho serviu para valorizar o bairro do ponto de vista económico, mas que, quando já não precisavam deles, foram “escorraçados”. Frederico, mais uma vez, faz o ponto da situação: “Agora, as ruas estão sujas, passa muito menos gente… Já não há razões para vir aqui. O Intendente está morto.” A “morte” foi anunciada pelas sucessivas não renovações de contratos de arrendamento, do grupo recreativo Os Amigos do Minho, passando pelo Sport Clube do Intendente até ao LARGO Café e Residências. Em Maio, encerrou o café O das Joanas e, até 2026, a Casa Independente terá de entregar as chaves. Marta Silva, da cooperativa LARGO, olha para os anos que esteve no Intendente como “muito ricos”. “Conseguimos criar uma família muito pouco provável, um ambiente que é difícil repetir-se. Só é pena perceber que muita coisa podia ter sido antecipada. E o problema não é o turismo, é o equilíbrio”, diz.

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