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O que têm em comum José Avillez, Anthony Bourdain, Andoni Luis Aduriz, Massimo Bottura ou Alain Ducasse? Além da mestria na cozinha, estes e outros cinco chefs partilham histórias de dor, resiliência e de superação, reunidas no novo livro do jornalista Nelson Marques.
Foram dois anos de entrevistas a dez chefs compiladas em 216 páginas. Foram acontecendo fruto dessas personalidades “se destacarem muito e de haver um grande interesse nelas”, conta Nelson Marques, jornalista do Expresso, a propósito do lançamento de Chefs sem Reservas, o seu novo livro. Em Janeiro, o jornalista deu por si no escritório da Osteria Francescana, restaurante de Massimo Bottura, em Modena, Itália. A ideia era conduzir ali a entrevista ao chef com três estrelas Michelin, mas seguiu um rumo inesperado. “Chega a assessora e diz que houve uma mudança de planos, que vamos para a casa de campo do Massimo. “Entrei na casa do Bottura e sentei-me com ele no sofá a fazer uma entrevista que no final demorou seis horas”, recorda.
“Entrei na vida do homem. Na arte, música que influenciam os seus pratos. E tu estás lá. De repente entra a mulher, a filha, passa a arquitecta, a sua primeira namorada”. Nelson queria perceber quem eram essas pessoas, deuses da cozinha elevados à categoria de estrelas pop. Para escrever sobre gastronomia, diz, há que ter memória, saber do que se fala. Nelson não é jornalista gastronómico e decidiu-se a não entrar em terreno pantanoso. Resolveu contar histórias, neste caso as de maestros das cozinhas.
“Isto não é um livro para foodies que querem saber as inspirações destes chefs. Queria perceber o que os trouxe até aqui. Todos eles são feitos de pedaços de histórias com que se depararam pelo caminho e queria descobrir quem são estas pessoas. Vai muito para lá da gastronomia. A comida está presente mas é sobretudo as histórias deles”.
Quando entrevistou Avillez num dos espaços do seu Bairro no Chiado estava um pouco receoso. “Tinha duas horas para falar com ele mas ao fim de duas horas e meia disse-lhe que não tínhamos chegado sequer a meio”. Voltaram a encontrar-se. A conversa durou quatro horas e meia no total. “Falou de psicanálise por causa da infância dele. Durante muito tempo foi o homem da casa. Olha-se para o Avillez e vê-se apenas a figura bem-sucedida, mas o que tentei fazer foi mostrar as feridas, cicatrizes que todos os chefs têm”, refere.
E como se consegue que estes chefs se abram? “Forjar uma intimidade é o truque. Levo-os para o conforto da infância ao início da entrevista. Quando se pergunta qual é a primeira memória ou os sabores da infância, consegues levá-los para a zona de memórias afectivas e emocionais”. A certa altura, o autor só se apercebe que as histórias reunidas são quase todas sobre superação quando acaba o livro. “Só quando estou a escrever a introdução é que percebo que há esta narrativa do sucesso que brota, na maior parte dos casos, do fracasso”, nota. O que estes seres humanos mostram é que a receita do sucesso é a capacidade de resiliência e de “voltar a montar o esqueleto, muitas vezes osso por osso”. Nelson só compreendeu essa mensagem ao ultimar o livro, e que se aplica para lá do mundo da cozinha.
Alain Ducasse, o pai da nouvelle cuisine, é um dos chefs retratados. Aos 27 anos sofreu um acidente de avião do qual foi o único sobrevivente. Passou um ano no hospital, foi operado 12 vezes. Passou três anos sem cozinhar. “Como não podia cozinhar fisicamente começou a pensar os pratos, os restaurantes e os conceitos. É por isso que hoje tem 30 restaurante pelo mundo”, graceja.
“Se pensarmos no Vítor Sobral, o primeiro restaurante faliu. O Ljubomir montou um 100 Maneiras em Cascais com o Avillez e faliu. O Bottura tentou romper a tradição da cozinha italiana e quis desistir”. Foi um jornalista que, por ter ficado preso num engarrafamento, acabou a jantar no restaurante de Bottura e lhe disse que no fim-de-semana leria no jornal L’Espresso o que tinha achado da experiência. Foi aí que a sua vida mudou.
Nelson acabou por beber muitos dos conselhos dos chefs retratados. Um dos pratos mais famosos de Bottura, “quem deixou cair a tarte de limão”, apareceu-lhe de algo inesperado. Alguém na cozinha deixou cair uma tarte de limão e o chef pensou “porque não servimos uma sobremesa toda escangalhada?". Com essa influência “quase subliminar”, Nelson chegou à conclusão que faria mais sentido escolher para a capa do livro um prato em cacos do que uma fotografia de um prato elaborado. “Assim, é impossível as pessoas verem o prato todo partido e acharem que se trata de um livro de receitas”.
A ideia inicial para o livro era apenas compilar todas as entrevistas feitas para o Expresso. Acabou por ser um livro de confissões, onde as entrevistas são a base de tudo, sem as perguntas e transformando o discurso em primeira pessoa, o que favorece o tom intimista. Chefs sem Reserva abre com uma entrevista feita a Anthony Bourdain em 2011, quando o chef e apresentador norte-americano esteve em Lisboa para gravar um dos seus episódios do programa Sem Reservas.
O livro é-lhe dedicado. “A morte de Bourdain ainda está presente. Para um jornalista, mesmo que não escreva sobre gastronomia, ele era o contador de histórias que muitos gostariam de ser. Olhas para Bourdain e gostavas de ter a vida que levava, a forma de contar histórias, o sarcasmo, e quando uma pessoa destas desaparece…”, diz. Se fosse hoje, garante Nelson, a entrevista não teria sido assim. “Quando percebes o fim trágico, gostavas de ter voltado atrás e de ter tentado compreender aquela personagem. A entrevista do Bourdain é mais curta e não vai tão fundo, mas senti que não podia ter prescindido dela e que deveria abrir o livro com ele”.
Metade dos chefs retratados são portugueses, os restantes são internacionais. As histórias começam com Bourdin e a partir daí estão ligadas, apesar de não haver uma ordem cronológica. “Do Bourdain passo para o Bottura. Ele estagiou com o Ducasse e aí aparece o francês. O Avillez diz que adorava ser como o Andoni Luis Aduriz. Quem lê pensa quem é essa pessoa e eu respondo-lhe a seguir”, explica.
O título vem das influências de Bourdain. Não foi pensado, admite. Afinal, o que aqui é retratado são as histórias de dez chefs, todos eles personalidade ímpares, sem barreiras e a abrirem o jogo das suas emoções. Ao ler-se o livro de Nelson Marques, entra-se no universo da alta cozinha. Conhece-se os nomes dos grandes protagonistas, mas o que o jornalista consegue dar ao leitor é um acesso raro à intimidade dos cozinheiros que, por muitos, são vistos como pessoas de sucesso a quem a vida sempre sorri. Afinal, também são humanos, diz-nos Nelson.
Chefs sem Reservas, Nelson Marques (Clube do Autor), 17,55€.