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Por trás do glamour da alta cozinha, Nelson Marques mostra as cicatrizes dos grandes chefs

Sebastião Almeida
Escrito por
Sebastião Almeida
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O que têm em comum José Avillez, Anthony Bourdain, Andoni Luis Aduriz, Massimo Bottura ou Alain Ducasse? Além da mestria na cozinha, estes e outros cinco chefs partilham histórias de dor, resiliência e de superação, reunidas no novo livro do jornalista Nelson Marques. 

Foram dois anos de entrevistas a dez chefs compiladas em 216 páginas. Foram acontecendo fruto dessas personalidades “se destacarem muito e de haver um grande interesse nelas”, conta Nelson Marques, jornalista do Expresso, a propósito do lançamento de Chefs sem Reservas, o seu novo livro. Em Janeiro, o jornalista deu por si no escritório da Osteria Francescana, restaurante de Massimo Bottura, em Modena, Itália. A ideia era conduzir ali a entrevista ao chef com três estrelas Michelin, mas seguiu um rumo inesperado. “Chega a assessora e diz que houve uma mudança de planos, que vamos para a casa de campo do Massimo. “Entrei na casa do Bottura e sentei-me com ele no sofá a fazer uma entrevista que no final demorou seis horas”, recorda.

©Duarte Drago

“Entrei na vida do homem. Na arte, música que influenciam os seus pratos. E tu estás lá. De repente entra a mulher, a filha, passa a arquitecta, a sua primeira namorada”. Nelson queria perceber quem eram essas pessoas, deuses da cozinha elevados à categoria de estrelas pop. Para escrever sobre gastronomia, diz, há que ter memória, saber do que se fala. Nelson não é jornalista gastronómico e decidiu-se a não entrar em terreno pantanoso. Resolveu contar histórias, neste caso as de maestros das cozinhas.

“Isto não é um livro para foodies que querem saber as inspirações destes chefs. Queria perceber o que os trouxe até aqui. Todos eles são feitos de pedaços de histórias com que se depararam pelo caminho e queria descobrir quem são estas pessoas. Vai muito para lá da gastronomia. A comida está presente mas é sobretudo as histórias deles”.

Fotografia: Duarte Drago

Quando entrevistou Avillez num dos espaços do seu Bairro no Chiado estava um pouco receoso. “Tinha duas horas para falar com ele mas ao fim de duas horas e meia disse-lhe que não tínhamos chegado sequer a meio”. Voltaram a encontrar-se. A conversa durou quatro horas e meia no total. “Falou de psicanálise por causa da infância dele. Durante muito tempo foi o homem da casa. Olha-se para o Avillez e vê-se apenas a figura bem-sucedida, mas o que tentei fazer foi mostrar as feridas, cicatrizes que todos os chefs têm”, refere.

E como se consegue que estes chefs se abram? “Forjar uma intimidade é o truque. Levo-os para o conforto da infância ao início da entrevista. Quando se pergunta qual é a primeira memória ou os sabores da infância, consegues levá-los para a zona de memórias afectivas e emocionais”. A certa altura, o autor só se apercebe que as histórias reunidas são quase todas sobre superação quando acaba o livro. “Só quando estou a escrever a introdução é que percebo que há esta narrativa do sucesso que brota, na maior parte dos casos, do fracasso”, nota. O que estes seres humanos mostram é que a receita do sucesso é a capacidade de resiliência e de “voltar a montar o esqueleto, muitas vezes osso por osso”. Nelson só compreendeu essa mensagem ao ultimar o livro, e que se aplica para lá do mundo da cozinha.

Alain Ducasse, o pai da nouvelle cuisine, é um dos chefs retratados. Aos 27 anos sofreu um acidente de avião do qual foi o único sobrevivente. Passou um ano no hospital, foi operado 12 vezes. Passou três anos sem cozinhar. “Como não podia cozinhar fisicamente começou a pensar os pratos, os restaurantes e os conceitos. É por isso que hoje tem 30 restaurante pelo mundo”, graceja.

“Se pensarmos no Vítor Sobral, o primeiro restaurante faliu. O Ljubomir montou um 100 Maneiras em Cascais com o Avillez e faliu. O Bottura tentou romper a tradição da cozinha italiana e quis desistir”. Foi um jornalista que, por ter ficado preso num engarrafamento, acabou a jantar no restaurante de Bottura e lhe disse que no fim-de-semana leria no jornal L’Espresso o que tinha achado da experiência. Foi aí que a sua vida mudou.

Nelson acabou por beber muitos dos conselhos dos chefs retratados. Um dos pratos mais famosos de Bottura, “quem deixou cair a tarte de limão”, apareceu-lhe de algo inesperado. Alguém na cozinha deixou cair uma tarte de limão e o chef pensou “porque não servimos uma sobremesa toda escangalhada?". Com essa influência “quase subliminar”, Nelson chegou à conclusão que faria mais sentido escolher para a capa do livro um prato em cacos do que uma fotografia de um prato elaborado. “Assim, é impossível as pessoas verem o prato todo partido e acharem que se trata de um livro de receitas”.

A ideia inicial para o livro era apenas compilar todas as entrevistas feitas para o Expresso. Acabou por ser um livro de confissões, onde as entrevistas são a base de tudo, sem as perguntas e transformando o discurso em primeira pessoa, o que favorece o tom intimista. Chefs sem Reserva abre com uma entrevista feita a Anthony Bourdain em 2011, quando o chef e apresentador norte-americano esteve em Lisboa para gravar um dos seus episódios do programa Sem Reservas.

O livro é-lhe dedicado. “A morte de Bourdain ainda está presente. Para um jornalista, mesmo que não escreva sobre gastronomia, ele era o contador de histórias que muitos gostariam de ser. Olhas para Bourdain e gostavas de ter a vida que levava, a forma de contar histórias, o sarcasmo, e quando uma pessoa destas desaparece…”, diz. Se fosse hoje, garante Nelson, a entrevista não teria sido assim. “Quando percebes o fim trágico, gostavas de ter voltado atrás e de ter tentado compreender aquela personagem. A entrevista do Bourdain é mais curta e não vai tão fundo, mas senti que não podia ter prescindido dela e que deveria abrir o livro com ele”.

Metade dos chefs retratados são portugueses, os restantes são internacionais. As histórias começam com Bourdin e a partir daí estão ligadas, apesar de não haver uma ordem cronológica. “Do Bourdain passo para o Bottura. Ele estagiou com o Ducasse e aí aparece o francês. O Avillez diz que adorava ser como o Andoni Luis Aduriz. Quem lê pensa quem é essa pessoa e eu respondo-lhe a seguir”, explica.

O título vem das influências de Bourdain. Não foi pensado, admite. Afinal, o que aqui é retratado são as histórias de dez chefs, todos eles personalidade ímpares, sem barreiras e a abrirem o jogo das suas emoções. Ao ler-se o livro de Nelson Marques, entra-se no universo da alta cozinha. Conhece-se os nomes dos grandes protagonistas, mas o que o jornalista consegue dar ao leitor é um acesso raro à intimidade dos cozinheiros que, por muitos, são vistos como pessoas de sucesso a quem a vida sempre sorri. Afinal, também são humanos, diz-nos Nelson.

Chefs sem Reservas, Nelson Marques (Clube do Autor), 17,55€.

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