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Projecto Global é o nome do próximo filme de Ivo Ferreira e também o nome de uma organização política criada em 1980 por portugueses descontentes com o pós-revolução. Um projecto político que tinha como braço armado as FP-25 (Forças Populares 25 de Abril), sobre as quais ainda hoje se fala, mas das quais parece saber-se ainda pouco. A Time Out acompanhou algumas horas de rodagem em Lisboa, no Cemitério dos Prazeres, e falou com alguns dos intervenientes nesta produção, da realização à produção, e também com os actores Jani Zhao, Ivo Canelas e José Pimentão.
Nos anos que se seguiram à Revolução do 25 de Abril de 1974, muitos portugueses ficaram desiludidos com o rumo político na nova era democrática do país. Se no pós-revolução apareceram organizações contra-revolucionárias de direita, como o Movimento Democrático de Libertação de Portugal (MDLP), responsável por atentados bombistas, por outro lado, o sentimento de que o projecto de Abril tinha falhado acabou por fazer nascer organizações extremistas à esquerda que acreditavam na luta armada, nomeadamente as Brigadas Revolucionárias e mais tarde as FP-25, no início dos anos 80, na sequência da eleição do governo da AD – Aliança Democrática. Que, como hoje, juntava PSD, CDS e PPM. Serve esta introdução para dar um enquadramento (bastante) básico desta nova produção, uma longa-metragem escrita e realizada por Ivo Ferreira (Cartas da Guerra), inspirado na realidade, mas com personagens fictícios.
Libertar da obrigação de um registo histórico
“Eu tenho um fascínio por alguns temas que são um bocadinho apagados da nossa história contemporânea. Sobretudo deste processo que se poderia compreender desde a Guerra Colonial ao pós-25 de abril e ao PREC. E são momentos que eu vivi muito jovem na minha vida, dos quais tenho umas imagens muito ténues, fortes, com certeza, mas também que representam ou não representam a realidade, coisa que nós nunca vamos saber muito bem”, começa por explicar Ivo Ferreira à Time Out, no final da manhã de rodagem no Cemitério dos Prazeres.
Para o realizador, “a memória é uma construção”; por isso mesmo, defende que este filme, que sonhou fazer ainda em criança, é também “uma memória do presente”. “A minha tentativa aqui nunca é reproduzir, mas inventar uma realidade e uma orgânica própria, interna, do filme. Sou muito fascinado com todas as aventuras, a aventura do que foi a revolução e as suas conquistas, e também sou fascinado pelos erros das pessoas para chegar a um fim, ou uma ideia, e o que se passa pelo caminho. Tudo isto são coisas que me fascinam à partida, os seres humanos em geral, e a nossa história contemporânea em particular”, diz.
Ainda assim, a produção contou com um trabalho de investigação desenvolvido pelo historiador Francisco Bairrão Ruivo, especializado neste período da história portuguesa, que passou por entrevistas a antigos operacionais ou processos de tribunal, também em busca de pequenas histórias, menos mediáticas. Informação que também será reunida num futuro livro, como adianta o realizador. “Há esta investigação que foi fomentada pelo processo criativo de um filme e achámos que não fazia sentido não aproveitar essa dinâmica”, afirma. “O nosso ‘Projecto Global’ é também que o cinema produza conhecimento não directamente. Até para libertar-me absolutamente dessa obrigação que isto seja um registo histórico, que as pessoas pensem ‘aqui é que eu vou ver a verdade do que aconteceu’, porque não há verdades de nada. Há memória e há sempre 30 mil versões. Há coisas que são concretas, factos, coisas de investigação, tribunal; e depois há os testemunhos, que são a verdade de cada testemunho.”
Uma determinada juventude
Este Projecto Global é um filme, mas também será estreada uma versão em seis episódios, já a ser pensada durante a rodagem, uma série cuja estreia poderá acontecer entre o final deste ano e o início do próximo. Luís Urbano, da produtora O Som e a Fúria, levanta um pouco do véu sobre o enredo. “É uma história de ficção, inspirada nas experiências, não só dos membros que pertenciam às FP-25, mas também dos membros que pertenceram à polícia e que fizeram todo o processo de, digamos, perseguição a este grupo”, diz. “Eu gosto muito mais de dizer que este filme é sobre uma determinada juventude do início dos anos 80.” No lado dos operacionais revolucionários, Urbano descreve dois tipos de jovens dessa altura: os que quando se deu o 25 de Abril entraram naquela ideia de sonho, de um país que se vai mudar completamente, que vai enterrar o fascismo e vai caminhar para uma sociedade igualitária e que depois se desiludem com o 25 de Novembro; e que se junta “com uma outra malta igual, simplesmente uma malta que já tinha feito os últimos anos da guerra da África, musculados, que tinham uma relação com armas”.
A protagonista é a actriz portuguesa Jani Zhao, que recentemente se destacou além-fronteiras no papel de Stingray, em Aquaman e o Reino Perdido. Em Projecto Global, é Rose, uma actriz e mãe solteira que se politizou após o 25 de Abril, sendo levada para uma célula das FP-25 pelo amigo Queiróz, interpretado por Isac Graça. “Este movimento das FP-25 de Abril é um contexto muito específico da história de Portugal. É uma organização armada, clandestina, da extrema esquerda, e acho que o filme se inspira em várias acções violentas que aterrorizaram Portugal inteiro. Os seus princípios não eram esses, a sua intenção não era essa, mas acabaram por afastar as massas que eles próprios queriam libertar da opressão e da possibilidade de voltarmos ao fascismo, a uma ditadura, a qual Portugal viveu durante 48 anos”, enquadra Jani Zhao. Para a actriz, no ano em que se assinalam os 50 anos do 25 de Abril, é “apropriado e necessário” falar sobre este tempo, “ainda por cima com a extrema-direita a avançar e a ganhar terreno” e olhar “para uma ferida aberta e tentar que ela cure, abrir um bocado as portas para haver uma corrente de ar e para que dessa forma haja uma evolução da sociedade”. Zhao que acredita que o olhar do realizador neste projecto é o de “tentar reconstruir a memória colectiva de um país e olhar para uma ferida, para um tabu, que acho que é bastante evidente, que ninguém quer falar”.
Do outro lado da barricada, neste enredo, está Ivo Canelas no papel de um inspector da Polícia Judiciária, um homem que vive num “paradoxo”, tentando “manter o equilíbrio entre as suas crenças individuais e a sua responsabilidade política”. “Ele vive este paradoxo entre querer acreditar que podemos viver em democracia e o medo: ‘Será que estou certo neste sítio, de confiar que a democracia poderá seguir sem estes actos violentos?’. Ele tem a experiência da guerra que também define, de uma forma muito orgânica, uma postura de não-violência e de um retrocesso para um sítio onde a morte de repente vem para a cidade, em vez de ser algo que estaria distante de nós”, diz o actor.
Ivo Canelas transporta o radicalismo de ontem para o de hoje, sublinhando que a democracia “é algo profundamente frágil que precisa ser mantida por todos”. “Vivemos um momento político cheio de questões, cheio de radicalismo, não armado, não violento, mas profundamente manipulador e com laivos de extremismo que apresentam soluções radicais que simplificam tudo, como se seguir sempre em frente atropelando uma série, por exemplo, de minorias, resolve uma série de problemas para as ditas maiorias. Portanto, uma instigação do outro como sendo o inimigo, e não nós próprios como sendo todos possíveis inimigos”, observa. “E acho que este material questiona, desde os anos 80, o momento que estamos a viver hoje de falsas soluções e de radicalismos que, na minha opinião, põem em risco a própria democracia”.
Também presente na manhã de rodagem esteve o actor José Pimentão, que interpreta Marlow, filho de retornados, polícia e um interesse amoroso de Rosa, mas inicialmente pouco sabem um sobre o outro. "As motivações dele não são maioritariamente políticas ou ideológicas. Eu diria que talvez ele tombe até mais para o lado oposto do que as restantes personagens, mas a ligação com ela é uma ligação que tem mais a ver com questões pessoais do que propriamente com ideológicas ou políticas", descreve. Sobre o filme/série, com o qual confessa ter aprendido muita coisa, acredita que este é "um tema que foi um bocadinho varrido para baixo do tapete, porque foi doloroso para muita gente e terminou de uma forma muito pouco clara. E então acho que é um tema que se ouve falar muito por alto, mas parece que ninguém quer nunca aprofundar". Além disso, diz que este Projecto Global não é sobre "dar respostas de isto é certo ou aquilo é errado". "Acho que é francamente mais interessante sem apontar dedos a lado nenhum, deixar as pessoas, quando absorverem a história e os factos, tirarem as suas próprias conclusões".
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