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Ouvimos demasiadas vezes que não devemos voltar aos sítios onde fomos felizes, como se não fosse exactamente a felicidade que nos fizesse lá voltar. Olhe-se para um restaurante. O que é que nos faz regressar? A boa comida, seguramente, mas mais do que isso, talvez, as pessoas. Quem nos recebe, quem nos faz sentir em casa, quem nos dá atenção, mesmo que nem nos conheça, independentemente do tipo de restaurante onde nos sentamos, do mais barato ao mais caro. Sem empregados de mesa, sem um bom serviço de sala, poucos são os restaurantes que sobrevivem. O que falta, então, para que se valorize realmente quem nos serve? Se hoje a gastronomia portuguesa se destaca – e por isso tivemos, em Fevereiro, a primeira gala e o primeiro guia Michelin dedicados em exclusivo ao nosso país – é porque algures no meio alguém mantém o normal funcionamento de tudo. Alguém, aparentemente, invisível, seja porque o serviço a isso obriga, seja por falta de palco.
“Não se costuma falar do empregado de mesa como uma profissão de valor, mas num restaurante é uma peça fundamental que pode estragar ou pode levar a experiência ao mais alto nível”, diz-nos Nádia Desidério, directora e head sommelier do Belcanto. Foi no restaurante do Chiado onde José Avillez tem duas estrelas Michelin que se apaixonou pelos vinhos, ela que chegou para servir. Uma e outra coisa estão muitas vezes ligadas – por desencantamento pela posição que ocupam ou porque acabam de facto a entrar num mundo que desconheciam gostar tanto, como foi o caso de Nádia. “Há muitos empregados de mesa a seguir o caminho de escanção também porque percebem que é uma área mais querida do público, mais admirada”, aponta João Sá, chef do Sála, na Rua dos Bacalhoeiros. Com Paulo Amado, das Edições do Gosto e um dos grandes impulsionadores da gastronomia nacional, e Alejandro Chávarro, do Arkhe, Sá criou o movimento Invisble, precisamente para dar visibilidade a estas pessoas. Paulo Amado fala de “uma profissão de transição.” “A malta não se encanta, não há reconhecimento”, lamenta. “Nós criámos o Invisible porque sentíamos que fazia falta o reconhecimento das profissões da sala. Não descobrimos nada, toda a gente sabe disso. Nós constatámos e dissemos: vamos lá fazer alguma coisa. Era preciso sinalizar estas profissões, era preciso criar uma plataforma para formar uma comunidade, para dar mais conhecimento, para haver partilha.”
Já têm acontecido algumas acções, a última das quais uma conversa, em Outubro de 2023, sobre a valorização do serviço de sala na feira Grandes Escolhas Vinhos & Sabores, na FIL, assistida por pouco mais de uma dúzia de pessoas. Na altura, Amado não deixou de constatar que, no mesmo sítio, apresentações com chefs e degustações tiveram enchentes.
“No trabalho de sala tens de ser o intermédio entre o cliente e a equipa de cozinha, a equipa de bar e a equipa do sommelier. Tens de ser um bocadinho o maestro da orquestra, o maestro de coisas que estão a acontecer, mas o que é que te chega? O que é que é palpável? Todas estas ligações não são palpáveis. Tudo o que te chega à frente nunca é nosso”, explica Eva Ferreira, empregada de mesa do Plano, restaurante de fine dining de Vítor Adão. “De nós, tu recebes o sorriso, recebes o bom trato, recebes uma boa experiência, uma boa explicação daquilo que está a acontecer, mas nunca é algo palpável.”
Maria Hipólito, professora na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa, não podia estar mais de acordo. “O problema com o serviço é que não há nada que seja produzido por nós. O receber não é uma coisa que eu possa agarrar e mostrar”, explica a professora de Food and Beverage Service. “Observando os números de forma muito simples, nós temos sempre mais turmas de cozinha.” Este ano, revela, conta com 20 alunos, mas admite que nem todos querem servir às mesas. “A maior parte entra porque quer ser bartender, ou quer lidar só com vinho, ou quer abrir o seu próprio negócio. A noção de sala não é uma coisa que esteja muito presente. Pelo menos quando vêm para cá. É como se o serviço fosse um passo e não um objectivo final”, acrescenta. “Qualquer miúdo que vá para a faculdade e que precise de ganhar uns trocos vai servir às mesas. É aquela coisa que qualquer pessoa faz. A ideia de se ter formação não está presente. Vou aprender a ser um empregado de mesa. Ninguém diz isto”, lamenta, recordando que foi o gosto por receber pessoas que a levou a trocar Direito pela Escola de Hotelaria. “Desde miúda era a coisa que eu mais adorava, pôr a mesa bonita, receber amigos e eles saírem de lá satisfeitos. Aquilo dava-me uma alegria imensa”, recorda. Ainda não tinha acabado o curso e já era “chefe de mesas num restaurante, o Optimista”. “Era estupidamente feliz e ainda assim tinha vergonha, às vezes, de dizer que servia às mesas porque temos este estigma estúpido do chef superstar e do empregado de mesa que é transportador de pratos e coitadinho não dá para mais.”
As palavras são duras, mas não há quem não lhes reconheça a veracidade – e ainda nem falámos das remunerações habitualmente abaixo do expectável. “Normalmente olha-se para o empregado de mesa, ou para quem vai para a sala, como as pessoas que não conseguiram a colocação nos seus cursos, nos seus empregos, alguém que precisa de um biscate para ganhar uns trocos. É urgente modificar isso, é preciso tornar a nossa posição mais aliciante”, destaca Luís Reis, chefe de sala do Belcanto. “Não somos personagens tão mediáticas e isso acaba por influenciar”, acredita Nádia Desidério. “É preciso haver referências. Os alunos, por exemplo, vêem sempre muito os chefs de cozinha a aparecerem na televisão e nas revistas, quase numa posição de glamour. O próprio método de ensino devia passar que isto também é um trabalho muito bonito onde podemos aprender imensas coisas.”
Imprensa e agências de comunicação focam-se, habitualmente, nos chefs e nas suas histórias. Se se fazem programas de entretenimento à volta da cozinha, é nos chefs, mais uma vez, que está a atenção. “Não há Masterchef para a sala”, constata Maria Hipólito. “Temos de perceber que há um encanto no serviço de sala. Eu sinto muito, às vezes, que nós somos vistos como robôs, como um serviço de transporte. E eu acho que há um encanto enorme em receber pessoas”, diz a professora da Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa. “Fazem-se coisas muito bonitas. Criam-se experiências muito bonitas. Quando as pessoas se sentem tocadas, eu acho que nós estamos a fazer uma diferença muito grande, independentemente do quão extraordinária a comida é.”
Na premiada série The Bear, disponível no Disney+, enquanto o chef de alta cozinha Carmy Berzatto (Jeremy Allen White) tenta salvar o restaurante do irmão, transformando-o e desenhando-o à sua imagem, o “primo” Richie (Ebon Moss-Bachrach) mantém-se à deriva. Por muito que queira ajudar, não parece encaixar em lado nenhum devido à aparente falta de capacidade. É só ao sétimo episódio da segunda temporada que Richie percebe que o seu propósito pode estar no serviço. A mando de Carmy, vai estagiar para um restaurante com três estrelas Michelin, distinguido como o melhor do mundo, e é-lhe atribuída a função inicial de polir os garfos, algo que faz atabalhoadamente e sem brio até lhe perceber o sentido. “Vês as caras das pessoas quando entram aqui? Quão felizes ficam por nos ver? E o quão felizes temos de estar por atendê-las?”, alerta, às tantas, Garrett (Andrew Lopez), que lhe orienta o estágio. “Se não gostas de cozinhar o que fazes num restaurante?”, pergunta-lhe Richie. “Actos de serviço. Gosto simplesmente de poder servir as outras pessoas. Trabalhei para um tipo que dizia que cuidar das pessoas a este nível era como trabalhar num hospital. Acho que é por isso que restaurantes e hospitais usam a mesma palavra: hospitalidade.”
Os garfos imaculados são apenas um detalhe num universo que se faz e que se distingue nos detalhes. É a mesa que come mais rápido e que por isso precisa que o serviço, dentro e fora da cozinha, aconteça de forma mais célere; a mesa com pessoas que não gostam de falar e que por isso só é interrompida nos momentos em que tem de ser e sempre de forma concisa; ou a mesa onde os clientes são uns idiotas (que também existem) e que por isso poderá exigir uma atenção especial para que a experiência não se torne desastrosa. Na ficção, como na realidade. É o guardanapo que é trocado sempre que alguém se levanta para ir à casa de banho, sem que a pessoa se tenha disso apercebido; é a cadeira que se puxa quando se percebe que alguém se vai sentar ou levantar; é, como acontece, por exemplo, no Fifty Seconds, aparecer alguém discretamente com uma bandeja com diferentes óculos disponíveis para quem mostrou dificuldade a ler o menu.
“Hospitalidade quer dizer que a pessoa é recebida de uma maneira superior, a hospitalidade é o acolhimento, é a humanidade, é um estar ao serviço do outro”, contextualiza Paulo Amado, para quem o movimento Invisible é a apologia do bom serviço. “É verdade que estas pessoas são invisíveis, mas isso é no sentido negativo. Nós quisemos ir pelo sentido positivo, destacando que essas pessoas que, na aparência, são invisíveis ao movimento, ao star system, são, afinal, praticantes do grande serviço. E o grande serviço é invisível. Tem que ver com hospitalidade, antecipação, presença, não presença, esclarecimento, conhecimento, delicadeza, orientação do cliente.”
Carlos Eduardo Silva, mais conhecido por Cadú, gerente do Bougain, em Cascais, vai mais longe: “Tem uma grande diferença entre serviço eficiente e serviço hospitaleiro. No serviço eficiente, nada falha, tudo chega a tempo, mas não há nenhuma interacção, não tem algo mais, enquanto no serviço hospitaleiro a pessoa é recebida com um sorriso, existe ali uma preocupação do empregado de mesa”. Aberto desde o Verão, no Bougain a atenção ao serviço está na génese do restaurante. “A nossa aposta foi trazer de volta um pouco daquele serviço de sala que era o diferencial antigamente. A maioria dos pratos é finalizado à frente do cliente, nem que seja o molho que a gente despeja na hora, ou um queijo que se rala, tem sempre esse momento de interacção. Enquanto se prepara um tártaro na frente do cliente, está-se ali na conversa com ele”.
O Arkhe, que reabriu no Largo do Rato, é mais um exemplo de que a pessoa certa na sala pode fazer a diferença. Desde que Alejandro Chavárro se juntou ao chef João Ricardo Alves que o restaurante vegetariano se tornou motivo de falatório pelas melhores razões. E tudo porque o João Ricardo soube admitir a sua fraqueza. “Não adianta ter a melhor cozinha do mundo, se não tivermos uma sala à altura, que saiba apresentar esses pratos, que saiba colocar as pessoas no mindset adequado para entender o que está saindo da cozinha. Nada agora é só cozinha”, justifica. “Eu sentia que faltava essa pessoa, até porque eu não gosto de fazer esse trabalho da sala. Eu não gosto de falar com pessoas, sou muito reservado, não me via saindo e explicando, até tentei no início e vi que era um desastre. Então, optei por ficar na cozinha. Tinha ali a janelinha onde eu falava com as pessoas, mas não era o meu forte.”
No LOCO, o restaurante com estrela Michelin de Alexandre Silva, a apresentação dos pratos é quase sempre responsabilidade dos cozinheiros numa sala chefiada por João Marujo. “Nós nunca quisemos ser muito robóticos. Vir explicar os pratos é óptimo porque permite uma interacção que eu acho que para eles na cozinha é muito importante, passam muito tempo a lidar com coisas muito minuciosas e sem nenhum falatório”, aponta o chefe de sala, cuja presença no restaurante se sente assim que se passa a porta. Conhece os cantos à casa, é ele próprio casa, mesmo que às vezes possa parecer mais brusco, e não deixa que ninguém se retraia por saber que uma ida ali é uma experiência. “Eu acho que eu não sou a cara do LOCO, eu acho que sou a empatia do LOCO. Já são oito anos, vou conhecendo as pessoas e também tenho mais tempo para falar com os clientes. O Alexandre tem muitas coisas para fazer, não pode estar sempre presente e eu acabo por ser quase um contador das histórias que o LOCO é e das coisas que o LOCO quer ser.”
É, a partir da leitura que faz de quem ali chega, que a cozinha vai reagir. “Quando tiramos o pedido, há uma tentativa de dar logo um mote sobre como é a mesa – mais tímida, mais descontraída, mais interactiva, mais conversadora, mais formal – porque há uma preocupação de nos conseguirmos adaptar na apresentação”, elucida, admitindo que “muitos anos de leitura de pessoas” não são infalíveis. E esse, talvez, seja um dos maiores desafios.
“A parte das pessoas não é fácil. Eu costumo dizer que 90% do trabalho de uma pessoa que esteja a fazer serviço de sala é ler as pessoas que tem à frente. Há pessoas que precisam que sejamos invisíveis porque estão num date ou numa reunião de negócios, e há outras que vão pela experiência. Clientes diferentes têm necessidades diferentes e nós temos que saber adaptar-nos e ser para eles o que eles precisam naquele momento”, defende Maria Hipólito. “Não é fácil, implica muito tacto, implica muita educação, implica nós desligarmos deste papel que nos foi incutido socialmente, nos últimos anos, de transportadores de pratos. Não é o nosso papel. Isso é uma tarefa que, por acaso, nós executamos”, defende.
Para a directora do Belcanto, são as pessoas o maior desafio do seu trabalho. Ou melhor, aquilo a que elas podem obrigar. “Temos de ter inteligência emocional”, considera. “Lidamos com culturas diferentes, pessoas que falam outras línguas, têm diversos backgrounds e isso acaba por ser um trabalho de muita exigência a nível psicológico. Temos mesmo de gostar daquilo que fazemos, porque lidamos com muitas, muitas pessoas diferentes, mas ao mesmo tempo também é motivador e aprendemos imenso.”
Foi quando lhe faltaram pessoas na sala que João Sá compreendeu a dificuldade do serviço. Não porque lhe fosse alheio, mas porque embrenhado na cozinha, havia situações que lhe escapavam. “Ao estar na sala, comecei a valorizar outras coisas que, se calhar, como cozinheiro, não valorizava. E acho que, hoje em dia, até falo de uma maneira diferente para a equipa, precisamente porque cada cliente é diferente. Há aqui um certo nível de compreensão maior e admiração também pelo trabalho dos profissionais de sala”, admite, quase em modo mea culpa. “Lidar com pessoas não é fácil”, garante Eva. “A perspectiva dos chefs em relação ao serviço de sala é muito a de ser um anfitrião dos amigos. Isso não te faz ter a noção do que são as coisas no dia-a-dia”, defende, destacando como servir à mesa obriga a estar preparado para todo o tipo de perguntas. “Mas então porque é que nós na sala somos excluídos de tudo? Eventos, formações…”, atira. “Para fazer bem o nosso trabalho, temos de nos formar. Eu tenho de passar uma ideia do chef, de uma região, de um produto. O nosso trabalho toca um pouco em todo o lado, mas nós nunca somos convidados para esses lados”, lamenta.
Um congresso dedicado à sala, como aquele que organiza para a cozinha, é a ambição de Paulo Amado e João Sá. “Só existem eventos na área da cozinha porque existe um conjunto de marcas que estão dispostas a apoiar, nenhum evento da área da cozinha é pago pelos interessados. Não existem eventos na área da sala porque as marcas que actuam na área da sala não têm demonstrado interesse em fomentar o desenvolvimento disso. Não têm a noção de que podem contribuir para o desenvolvimento das profissões”, argumenta Paulo. Só muito recentemente é que o Guia Michelin começou a distinguir nas suas galas o serviço de sala, bem como os prémios Mesa Marcada, site de gastronomia fundado há mais de uma década por Miguel Pires e Duarte Calvão – a equipa liderada por Pedro Marques no The Yeatman, em Vila Nova de Gaia saiu vencedora nas duas cerimónias. “Eu noto que há uma preocupação cada vez maior da parte de quem está na cozinha de saber também um bocadinho mais sobre o nosso trabalho, sobre o que se faz na sala, como o gerir e actuar em certas situações. Isso é um factor positivo”, acredita o chefe de sala do restaurante de Avillez, para quem o segredo do serviço está na proximidade.
Foi essa mesma proximidade que Pedro Ramos, head sommelier no Feitoria, o estrela Michelin no Altis Belém, chefiado por André Cruz, foi desafiado a criar na sala. Cheio de graça e ginga, desconstrói facilmente a ideia de que um restaurante deste género tem de ser formal, pesado. A mudança que aplicou à música que se ouve durante o jantar é disso exemplo: saiu a clássica para dar lugar ao pop e ao indie. “A gente tem o lado pessoal da vida, às vezes até pode haver alguma desavença na equipa, mas quando bate a hora do serviço é como se houvesse uma varinha mágica e estamos ali para o cliente. A gente esquece tudo e estamos ali para dar a melhor experiência”, atesta o sommelier. “Cada serviço é um serviço e a gente não sabe nunca quem é que vai passar por aquela porta. Temos de dar sempre o nosso melhor, não existem dias ruins, não existe isso do ‘estou chateado, não vou falar com ninguém.’ Até pode estar, mas vai ter que acontecer”, diz Pedro, ou Pedrones para os seus seguidores no Instagram. “Eu digo que aquilo é o nosso palco e nós somos os donos do teatro.”
*Este artigo foi originalmente publicado na edição Inverno 2024 da revista Time Out Lisboa
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