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Quarto Minguante, texto de Joana Bértholo e encenado por Álvaro Correia, estreia esta quinta-feira na Sala Estúdio. Se for engolido pelo cenário não estranhe.
Um advogado de meia-idade elimina emails. A sua mulher pousa a mala na cadeira da cozinha. Um neto diz que tem sonhado com naufrágios, a sua avó diz-lhe para ver menos televisão – já se sabe, é só desgraças. A neta observa. Um recluso-intelectual recita Malcolm X. Um terapeuta, mais ao lado, fala com alguém, fala consigo. Tudo isto numa ideia de casa, várias casas sobrepostas, a mesa é de todos, a cama idem. Um código de cores diferencia o que é de cada um, num cenário doméstico apertado, assim num estilo IKEA do futuro, com objectos tortos e funcionais. São personagens que não saem, pessoas que vão ficando.
Quarto Minguante é o primeiro texto saído do Laboratório de Escrita para Teatro promovido pelo Teatro Nacional D. Maria II a ir a cena. Foi escrito por Joana Bértholo e vai ser encenado por Álvaro Correia a partir desta quinta-feira na Sala Estúdio do D. Maria II.
A condição absurda do texto – planos paralelos e relações que nem sempre se entendem – foi uma das coisas que mais agradou a Álvaro Correia: “O texto é um desafio, tal como está escrito parece uma partitura, está escrito em excel, tive que o ler com um régua para perceber quem é que falava primeiro e quem falava depois. Tenho o texto em A3 e está todo marcado. Isto tem muito a ver com o ritmo, há qualquer coisa que vai cavalgando, há uma espécie de falso realismo, aqui não existe a ideia de tempo-espaço, é meio absurdo, uma alegoria de que o mundo vai ficando sempre mais curto. E, no fundo, porque é que não agimos perante aquilo que nos vai condicionado? Porque é que não sais?”, conta.
E, de facto, o mundo só reduz, só fica mais apertado. É que há três momentos distintos da peça, onde, gradualmente, o cenário se vai virando para dentro, a cozinha já é cama, a televisão já está virada para o tecto, é o que há, é o possível. “Sim, está muito presente esta ideia de repetição, de algo que começa e que recomeça a cada novo ciclo de forma diferente e que é no seu conjunto que se vai criando uma espécie de sentido”, explica o encenador. Essa espécie de rotina, a mulher do advogado quer o divórcio, ele diz que ela parece uma criança sempre a pedir coisas no natal; o neto está inquieto, olha a janela, pergunta à avó como foi a quimioterapia, quantos cavalos tem o seu cancro; avó diz que tem dois, como o seu primeiro carro; o terapeuta pratica terapia; o recluso já cita Kafka.
Mas e a neta, Lara? Lara é a âncora disto tudo, a sua semi-mudez parece ser o sustento, parece ser a única personagem transversal a todos os planos, capaz de tudo estar na prisão e com o irmão na cozinha em simultâneo. Ao ponto de – a cada mudança de ciclo, igual a dizer cada vez que o cenário aperta – se ir apropriando das frases das outras personagens, num registo irónico que serve de abre-olhos, como se lhes tivesse a perguntar o que esperam para sair. Mas o mundo encavalitar-se. E a porcaria da televisão está avariada. Essa é outra. Ninguém parece conseguir arranjá-la. E quando a televisão está estragada o que é que se faz? Mais: nem com a televisão estragada estas pessoas saem. “É como se ela se apropriasse de tudo e fizesse uma espécie de ironia sobre tudo o que eles foram dizendo, mas porque é que não saem? A fazê-los ver o quão ridículo é essa fuga constante que eles constroem”, enquadra Álvaro Correia. O mundo encavalitar-se, já tínhamos dito? Então alguém, ao menos, pode arranjar a televisão?
De Joana Bértholo. Encenação Álvaro Correia. Com Cristina Carvalhal, Gustavo Salvador Rebelo, José Neves, Manuel Coelho, Paula Mora, Rita Rocha, Sílvio Vieira
Teatro Nacional D. Maria II. Qua e sáb 19.30. Qui-Sex 21.30. Dom 16.30. 4-12€.