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Na Rua dos Lagares, que dá acesso ao Funicular da Graça, e imediações da Mouraria, são escassos os serviços e o comércio local. Para muitos, como Paula Santos, perto dos 50 anos, é muitas vezes preciso subir até à Graça, seja para ir à farmácia ou ao supermercado. E é aí que entra o funicular, inaugurado há um ano e de acesso gratuito desde então, numa espécie de teste protagonizado pela Emel, que agora prepara a transição para a Carris e para um novo modelo de acesso a transportes sob elevada pressão turística, como o eléctrico 28 ou o Elevador da Glória.
A ideia é que os utilizadores frequentes, leia-se "com passe", consigam aceder ao meio de transporte sem ter de esperar na fila dos passageiros ocasionais, maioritariamente turistas. No caso do Funicular da Graça, que leva 14 pessoas de cada vez, não entrar na primeira ronda pode, aliás, significar uma espera de mais de 20 minutos. E a proposta aprovada pela Assembleia Municipal de Lisboa, a 18 de Fevereiro, visa proteger os cidadãos disso. Nela pode ler-se que o plano é começar pelo equipamento da Graça, avançando-se então para a "replicação em todos os outros equipamentos de transporte operados pela Carris onde se verifique uma pressão turística relevante". Mas o acesso diferenciado, materializando-se provavelmente em duas filas, levanta um problema: quem não tem passe, mas é morador e usa com frequência o funicular terá de pagar bilhete?

Para Paula Santos, que passa temporadas na casa da mãe, na Mouraria, usar as vias alternativas a este transporte não é um problema. Tem pernas para subir as dezenas de degraus do Caracol da Graça, mesmo que sejam "inseguras" e "um degredo", nas suas palavras, frequentemente usadas para consumo de drogas, escorregadias em dias de chuva, sujas e impraticáveis para quem tem dificuldades de locomoção. Há ainda a Calçada do Monte ou o eléctrico 12, ambas possibilidades mais morosas. Mas para a mãe, que "está a bater nos 70" e tem médico de família na Graça, a conversa é diferente. "Para ela, não dá para subir as escadas a pé. É impensável. E o companheiro tem demência e é uma pessoa forte, jamais conseguiria subir um lance de escadas, sequer", conta Paula, na Pastelaria Lagares, um dos epicentros da discussão sobre o futuro do funicular. "Às vezes vejo senhoras já com alguma idade, de bengala ou muleta e os sacos de compras na outra mão a subir as escadas, em dias de chuva. Como?! Outra coisa é que há muitas pessoas que não têm passe e também não sei se todos os velhotes têm capacidade ou alguém para lhes tratar dos passes. Há aqui uma população muito idosa e que vive sozinha", acrescenta a cidadã.
Augusto Silva, por exemplo, tem 72 anos e vive na zona há mais de 60. "Quem não tem passe e é do bairro vai ter de pagar?", surpreende-se o morador, interpelado pela Time Out. "Eu não tenho e não vou estar a tratar disso todos os meses só para poder usar o funicular. Se passar a ser preciso, vou deixar de usar, é isso... Agora, isto é essencial para os moradores. Para ir ao banco, ao pão. Não há aqui uma única padaria", nota.
"No meu caso, a mudança não é um problema", conta Cecília Henriques, 35 anos, também residente na Mouraria. "Mas para a pessoa que vive comigo, que usa o carro para trabalhar, mas que tem de levar todos os dias a Celeste à escola, na Graça, e para isso usa o funicular, é uma questão. E não é só isso. Quando foi a inauguração, estava aqui o Carlos Moedas [presidente da Câmara Municipal de Lisboa – CML] e falei com ele sobre isso. Ele garantiu que seria um equipamento gratuito para os moradores e que ia cobrar aos turistas. Agora, vamos ver se é verdade", questiona-se Cecília.

Há quem considere, ainda, o custo do passe mensal excessivo, quando as deslocações planeadas são curtas e poucas. Para Isha (nome fictício, a cidadã natural da Índia preferiu não se identificar), que vive na Mouraria há cinco anos, ter o passe não é uma opção. "Tenho três filhos pequenos, levo-os todos os dias lá acima à escola, na Graça. Vamos quase sempre de elevador, porque com eles é mais fácil. Mas as despesas com a família são muitas. Não tenho dinheiro para mais uma conta de 30 euros [o valor do passe Navegante] todos os meses", explica.
Sem horários e muitas vezes "em manutenção"
O futuro uso do Funicular da Graça é tema frequente na Pastelaria Lagares. "Fala-se todos os dias, é uma preocupação, porque as pessoas daqui fazem muito a vida para cima e para baixo e, para muitos deles, subir as escadas ou a calçada é impossível", confirma o proprietário, José Ramos. Mas as queixas não se limitam ao que está por vir. "Nos primeiros dias [de funcionamento do equipamento], isto era uma loucura, havia muita gente, turistas e daqui. E o funicular estava sempre a subir e a descer. Agora, são sobretudo locais que o usam, mas muitas vezes as portas estão fechadas ou então as pessoas têm de ficar muito tempo à espera", observa o gerente.

Ao contrário dos elevadores e eléctricos da cidade operados pela Carris, cuja frequência horária está definida e afixada, no da Graça, fica-se apenas a saber que funciona entre as 09.00 e as 21.00. Para saber quando é a próxima viagem, o método usado é a pergunta espontânea ao funcionário em serviço, que indica uma estimativa da hora de partida. O aviso de que o equipamento está "em manutenção" ou de que há "motivos técnicos" por detrás das portas fechadas é também frequente, "sobretudo ao fim-de-semana", queixam-se os moradores.
Desde a inauguração, em Março do ano passado, até Dezembro do mesmo ano, o Funicular da Graça transportou 223.206 passageiros em 29.428 viagens, de acordo com a informação prestada pela Emel à Time Out. A média foi de 775 passageiros por dia, 64 por hora. A pressão turística não é elevada, mas o teste da Carris começará por aqui. "Não há sinalização, isto fica meio escondido. Ao contrário do que se esperava, talvez, acabou por ser um transporte usado pelos de cá, pela população", conta Maria Ivone, habitante da zona, de 63 anos, a dois do acesso ao passe mensal gratuito (válido para maiores de 65), mas não muito preocupada com o tema. "Há tanto tempo que se fala que se vai começar a pagar e que vai passar para a Carris e ainda não aconteceu nada... Até lá ainda faço os 65", brinca.
A proposta de alteração ao modelo de acesso diferenciado a eléctricos e elevadores também inclui o aumento do tarifário em vigor dos bilhetes ocasionais (pagando-se a bordo, os preços actuais andam entre os 3,20 e os 4,20 euros, com excepção do de Santa Justa, onde se cobram 6,10 euros), outra medida com vista a "assegurar o uso dos transportes públicos por parte da população", conforme explicou ao jornal Público, em Fevereiro, o vereador do Cidadãos Por Lisboa que esteve na origem na proposta, Rui Franco. A população, insistiu o responsável, "não pode ser prejudicada pela enorme procura turística sentida em alguns equipamentos".

Os moradores concordam. "É preciso criar uma solução, mas é uma solução de raiz. A cidade não tem, sequer, estrutura para este turismo. Uma vez tive de passar à frente de uma fila gigante para o eléctrico, porque tinha de levar a minha filha à escola", exemplifica Paula Santos. "O intuito disto [da construção do funicular] não é ou não devia ser turístico. Se alguma vez foi, foi mal pensado e é anti-comunidade local. Se vêm agora com a conversa do passe, as pessoas vão-se passar", antevê a lisboeta, sugerindo um modelo como o de entrada no Castelo de São Jorge, em que há filas separadas, sim, mas a entrada gratuita é garantida para os residentes em Lisboa.
Em Fevereiro, a CML indicou que o funicular deveria passar em Abril ou Maio para os comandos da Carris, mas nem esta empresa municipal nem a Emel se comprometem com datas. Sobre a adopção do novo modelo de acesso aos meio de transporte sob elevada pressão turística, que a Carris assume como "complexo", também não há um prazo estimado. A cobrança de bilhetes no Funicular da Graça a quem não tivesse passe mensal chegou a estar prevista para Maio de 2024.
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