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Entre a relva sintética e os pirilampos digitais acordados no fundo do palco, a fantasia é real. No teatro, isso é que conta. Porque irreal, vejamos, também pode ser o amor, como insiste Shakespeare nesta comédia. Sonho de uma Noite de Verão, um texto que já subiu a várias salas do país sob diferentes sirenes, joga homens e mulheres à sorte de feitiços numa floresta habitada por elfos e fadas. E o amor anda ao ricochete, agora e até 26 de Novembro entre as paredes do Teatro da Trindade INATEL.
Estamos no século XVI, nos arredores de Atenas, mas também na Sala Carmen Dolores, em 2023. À nossa frente, sandálias ao estilo grego e as vozes de Hérmia (Sara Matos), Helena (Mariana Pacheco), Lisandro (Cristóvão Campos) e Demétrio (Ricardo Raposo) exaltam um lirismo suave – “tempestades dos meus olhos”; “amor vivido sem tormentos”. Os quatro protagonizam juras e trocas de amor, ao ritmo da sua juventude e da força das suas ficções. Aqui, até o mais sensato pode ficar confuso.
Hérmia está apaixonada por Lisandro, mas o pai (Egeu) quer vê-la junto a Demétrio, que vive caído de amores por Hérmia mas é desejado por Helena, a incorrespondida. Para resolver a trama, Shakespeare fá-los escapar para uma floresta nos arredores de Atenas, numa noite quente. É então, na emergência de um mundo fantástico povoado por cabelos fúcsia e fadas, que o encenador e director artístico do Trindade, Diogo Infante, requisita um cancioneiro do amor português desde a década de 1940. Entre cenas e no meio delas, a orquestra move-se. É uma “receita Moulin Rouge”, como lhe chama Infante, que integra canções de Marco Paulo, Doce, Ornatos Violeta, José Cid, Expensive Soul ou Clemente. Quem entra, portanto, vai “partir naquela estrada” de amor e fantasia para, no fim, compreender que se o Sonho de uma Noite de Verão não era uma história pop na década de 1590, então, percebemos tudo mal.
O clássico como Verão permanente
Pegar numa obra intemporal como esta e transformá-la num musical não é um projecto sem antecessores. Nem mesmo a ideia de transpô-la para um tom ligeiro. A comédia acidentada de Shakespeare é um texto maleável nesse sentido e, portanto, tanto para Diogo Infante como para o director musical, Artur Guimarães, “tudo encaixou de uma forma muito natural”. Sem pesos. A vontade de explorar este texto, trabalhado pela primeira vez por Infante em 1991, como actor (agora, além de encenar, também interpreta o papel de um tecelão que a dada altura se transforma em burro), não foi trazer o original, mas sim o essencial, ao palco.
Hérmia, Helena, Demétrio e Lisandro são retratos da “volatilidade e impulsividade dos jovens”, tão vivas há cinco séculos quanto hoje, mas também trazem com eles, num sentido mais amplo, “a essência e a natureza humanas”, permeadas pelos seus ciúmes, invejas e egoísmos. “Podemos sempre traçar paralelos com o presente, fazer uma reflexão sobre a classe política actual, ou até mesmo sobre a teatral, mas a grande mensagem desta peça é para não perdermos tempo com merdas. É preciso amar e é preciso dizê-lo”, reivindica o encenador, que define este musical como “uma ode ao amor e à vida”.
Quando o assunto é essencial, não há margem para mal-entendidos. “Um clássico tem sempre essa elasticidade.” Tal como deixa cair uma das personagens, “não pode haver nada de muito errado” em algo que se pauta “pela simplicidade e pelo dever”. E o dever desta peça é manter o Verão.
Teatro da Trindade Inatel (Sala Carmen Dolores). 20 Set (ensaio solidário, com receita reverte a favor da Associação Corações com Coroa, 12€); 21 Set-26 Nov. Qua-Sáb 21.00, Dom 16.30. 10€ a 22€
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