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R. F. Kuang: “Quero encorajar os leitores a fazer perguntas”

‘A Guerra das Papoilas’ é um bestseller, ‘A Impostora’ é um sucesso no TikTok, ‘Babel’ poderá ser adaptado ao grande ecrã. Falámos com a autora, R. F. Kuang.

Raquel Dias da Silva
Jornalista, Time Out Lisboa
R. F. Kuang
© José Camacho (2023)R. F. Kuang
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Quando nos encontramos com R. F. Kuang, na zona do Marquês de Pombal, é final de tarde e a autora não só já provou os famosos pastéis de Belém, como conheceu os fãs portugueses. É a primeira vez que visita Portugal e não poderia estar a correr melhor. Promovidas pela Desrotina, a sua editora portuguesa, as sessões de apresentação, uma na Ler Devagar e outra na Fnac do Chiado, encheram de tal forma que as filas para os autógrafos se encaracolaram. Aos 28 anos, Rebecca é um sucesso internacional, sobretudo junto do público jovem adulto, que a acompanha desde o primeiro livro. Educada em Dallas, no Texas, começou a escrever A Guerra das Papoilas aos 19 anos, durante um ano sabático na China, de onde é natural. O primeiro volume do que viria a ser uma trilogia de fantasia épica foi publicado pouco depois do seu 22.º aniversário.

“Gosto de escrever desde que sei escrever, mas durante muito tempo pensei que teria de ser apenas um passatempo, porque venho de uma família de imigrantes chineses e é muito comum sermos empurrados para carreiras muito estáveis, que sejam financeiramente seguras, o que as artes não são de todo, são até assustadoras”, diz Kuang, antes de revelar que os pais a incentivaram a seguir matemática e que teve de ler muitos livros de ciência antes de a deixarem ler ficção só porque sim, para se divertir. “Quando entrei para a faculdade, escolhi Economia Internacional. Teria adorado estudar Inglês, mas nunca pensei que pudesse ser uma opção para mim. Então lia e escrevia sempre que possível e depois comecei a escrever A Guerra das Papoilas só para ver se era capaz de o fazer.”

A verdade é que não estava à espera de conseguir um agente quanto mais um contrato de edição para três livros. Isso levou-a a olhar para a vida de outra maneira, revela. Acabou por se licenciar em História em vez de Economia Internacional, na Universidade de Georgetown, e fazer um mestrado em Estudos Chineses, em Cambridge, e outro em Estudos Chineses Contemporâneos, em Oxford. Agora está a doutorar-se em Línguas e Literaturas do Leste Asiático, em Yale. E, se é verdade que o seu currículo académico impressiona, é ainda mais impressionante pensar que nunca parou de escrever. “De repente percebi que era algo que podia fazer profissionalmente. Desde então, tenho trabalhado para continuar a aperfeiçoar a minha arte”, partilha. “Espero poder fazê-lo para o resto da minha vida, mas foi mesmo um acaso. Há muitas pessoas que já sabem que vão ser romancistas publicados desde que são crianças. Só quando me estreei é que me atrevi a sonhar com esse dia.”

Depois de completar a sua trilogia, com o lançamento do A República do Dragão e The Burning God (a edição portuguesa está prevista sair em 2025), Kuang voltou a publicar duas vezes com relativo sucesso: Babel, uma fantasia sobre linguagem, tradução e colonialismo, que venceu um Nebula, para Melhor Romance, e chegou a ser nomeado para o Hugo, um dos mais importantes prémios literários para a ficção especulativa; e o também já premiado A Impostora (Yellowface, no original), a sua estreia na ficção literária, que se revelou um sucesso instantâneo nas redes sociais, sobretudo pela crítica ao sector editorial. “Antes da Guerra das Papoilas, já tinha escrito contos, mas nunca os publiquei. Quando me propus a escrever a sério, comprei muitos livros sobre o ofício, sobre como é que se monta um enredo, o que é uma estrutura de três actos, como é que mantemos os leitores entretidos durante 500 páginas. Tudo isso aprendi com o meu primeiro romance”, confessa.

Por que é que alguém que nunca sonhou ser uma romancista publicada arriscaria começar por uma trilogia? É a pergunta que não conseguimos calar. Kuang não pestaneja: pareceu-lhe que era o que todos os autores estavam a fazer, especialmente num género como a fantasia, e todas as suas histórias favoritas seguiam essa mesma fórmula. Nomeia trilogias como A Guerra das Estrelas e O Senhor dos Anéis, e admite ter-se sentido naturalmente atraída por essa ideia de Santíssima Trindade. Além disso, nessa altura estava também imersa na história chinesa do século XX e em acontecimentos como a Segunda Guerra Sino-Japonesa, a Revolução Cultural, o Grande Salto em Frente de Mao Tsé-Tung e a Revolução Comunista. O que estava prestes a fazer era demasiado ambicioso para ser condensado. 

“Foi um ano muito significativo para mim, porque foi também o ano em que pude falar com os meus avós pela primeira vez. Comecei a aprender a falar chinês e eles contaram-me estas histórias incríveis que eu queria preservar de alguma forma”, explica Kuang, que acabou a escrever uma fantasia épica inspirada em eventos reais, nomeadamente nas Guerras do Ópio, que resultaram na legalização da importação de ópio, e no horrível Massacre de Nanquim durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa, que no livro é referida como Segunda Guerra das Papoilas. “A maioria dos agentes literários a quem enviei o livro nunca me respondeu, mas basta uma pessoa dizer que sim, e a minha agente, a Hannah Bowman, adorou, disse que o leu num único fim-de-semana.”

As temáticas que decidiu explorar – sobretudo o trauma do colonialismo, da guerra e do racismo – não são propriamente para fracos de estômago, mas Kuang quis acreditar que encontraria os seus leitores. Pouco antes da sua estreia, Ken Liu e Fonda Lee, dois autores sino-americanos, lançaram livros bem-sucedidos, e Kuang sentiu-se encorajada. “Ontem à noite, uma leitora disse-me que quer muito escrever mas sente um abismo enorme entre essa vontade, o acto de escrever e o livro ser realmente publicado, e eu relembrei-a que o importante é percebermos como é que se preenche esse espaço. E só há uma maneira: hora após hora de trabalho consistente, porque nada acontece até termos o manuscrito pronto e não é possível terminá-lo se estivermos demasiado preocupados com o que vem depois.”

Ler muito, questionar ainda mais

Sempre que se sente perdida em projecções, Kuang procura concentrar-se no seu próprio conselho. Escrever cartas para os seus amigos também ajuda. Diz que gosta do facto de ser tão imediato e de não ter de se preocupar com cada frase. “Na verdade, acho que tem feito de mim melhor escritora, porque me permite relaxar e explorar diferentes estilos. É uma maneira muito divertida de me manter criativa e de continuar a praticar sem a pressão de ter um livro para entregar”, diz-nos. “Mas acho que as minhas leituras no momento influenciam muito o que e como escrevo. Quando comecei a escrever Babel, estava em Inglaterra, a ler imensos autores britânicos e histórias relacionadas com a academia e com o colonialismo, muitas das quais ambientadas no século XIX. Apaixonei-me pelo período vitoriano e por obras como Jonathan Strange e Mr. Norrell, de Susanna Clarke. Estava a divertir-me tanto a lê-lo que pensei, bem, também quero tentar escrever assim.”

Publicado em 2022, Babel leva-nos à Oxford de 1836 e acompanha Robin Swift, um órfão cantonês que é levado para Londres por um misterioso professor, que o treina para entrar em Babel, o prestigiado Real Instituto de Tradução da Universidade de Oxford. “No fundo, é sobre como, por vezes, aquilo que estamos a tentar desconstruir ou criticar ou derrotar é precisamente aquilo que amamos e de que queremos fazer parte, e é uma ilusão deslumbrante que gostaríamos de não ter de abandonar, mas que temos de abandonar se quisermos construir algo novo e melhor”, resume. “Desse ponto de vista, Babel termina em aberto, e tenho andado a pensar em ideias para uma possível sequela.” O que quer que seja, Kuang tenciona surpreender-nos. Foi o que fez quando passou da fantasia para a ficção literária com a A Impostora, uma sátira à indústria editorial norte-americana, pela voz de June Hayward, uma mulher branca que rouba um manuscrito a uma mulher asiática morta e o publica como se fosse seu.

“Eu gosto de muitos géneros diferentes e, na verdade, é desconcertante para mim a ideia de que há escritores capazes de escrever dentro do mesmo género uma vida inteira. Se os meus interesses mudam de semana para semana, como é que eu posso escrever o mesmo género de história para sempre?”, pergunta-nos, provocatória. “Quando comecei a escrever A Impostora, estava a ler imensa ficção contemporânea sobre a forma como nos relacionamos uns com os outros e fiquei com vontade de escrever uma história sobre como o fazemos na Internet. No fundo, é sobre solidão, desespero, inveja e insegurança”, diz. “Tento não dar muitas respostas, porque também não as tenho, também continuo a aprender, mas fico muito feliz quando me dizem que me leram e ficaram com vontade de investigar mais sobre determinado assunto. Acho que tudo o que quero é que o meu trabalho encoraje os leitores a fazer perguntas.”

O seu próximo livro, Katabasis, está previsto sair em Agosto de 2025 (ainda não há data para a edição portuguesa). Trata-se de uma fantasia sobre dois rivais académicos de Cambridge que têm de viajar até ao inferno para resgatar a alma do seu orientador. “Explora o luto, a linguagem e ideias filosóficas sobre a morte e a mortalidade. São esses os temas que estou interessada em explorar durante pelo menos os próximos dois anos. Depois disso vai depender do que eu estiver a estudar. Acho que ainda não escrevi nada digno de um prémio Booker, mas acho que esse é o prémio que continuará no horizonte para mim e algo pelo qual trabalharei.”

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