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Rui Cardoso Martins: “Dei tudo o que sabia sobre mim”

‘As Melhores da Morte’ é o regresso ao romance de Rui Cardoso Martins, que mais de dez anos depois continua a história de Cruzeta e da terra até onde o coveiro se mata. Falámos com o autor sobre a morte, o “suicídio alentejano” e o triunfo da vida.

Raquel Dias da Silva
Jornalista, Time Out Lisboa
Rui Cardoso Martins
© Francisco Romão Pereira/ Time Out LisboaRui Cardoso Martins
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É fim de tarde e os seus gatos – um preto e um ruivo – estão agitados. Rui Cardoso Martins, que aceitou o desafio de nos falar dos livros que tem para ler para a edição de Verão da revista Time Out Lisboa, recebe-nos em casa, na zona oriental de Lisboa, e intercala a conversa sobre o seu trabalho com memórias e recomendações. Quando pensa no que podem ter em comum as suas leituras preferidas, não hesita em evocar as forças opostas entre o trágico e o cómico com que trabalha e com as quais cresceu. “O Alentejo, nesse aspecto, é riquíssimo”, afiança o escritor, que nasceu em Portalegre, em 1967, e continua amiúde a revisitar a paisagem alentejana, inclusive em romance, ao qual regressa agora com As Melhoras da Morte. Já nas livrarias, a novidade dá seguimento, mais de dez anos depois, à história de Cruzeta, que conhecemos do seu livro de estreia, E Se Eu Gostasse Muito de Morrer.

“Ainda pensei que o Cruzeta tinha morrido e que ia contar a história como se fossem os seus últimos dez segundos de vida condensados numa vida inteira, super conceptual, uma parvoíce. Depois comecei a escrever aquele sonho absurdo com aranhas [com que abre o livro] e lembrei-me que ouvi estas histórias sobre pessoas que melhoram, mas melhoram só para se despedir, e sou de uma terra em que as pessoas dizem boas melhoras, como se as houvesse más, e de repente, olha que as há. Ainda agora tenho um amigo a passar pela mesma situação, e quer dizer, se a pessoa só melhora para se despedir, não são boas notícias. Há uma força qualquer, os outros animais também têm isso, mas pronto, estou muito curioso para ver como é que os leitores vão reagir, porque, quando se pegam em coisas muito pessoais, corre-se sempre o risco de ficar lamechas, o que eu detesto, apesar de ser um chorão”, diz-nos Rui, que crê não ter medo da morte e até muito tarde esteve livre desse desgosto.

Quando se aventurou a escrever sobre a terra onde até o coveiro se mata, já assistira ou ouvira falar de muitas desgraças – no Alentejo, chegado o Verão, era frequente caírem três ou quatro pessoas do Arco do Bispo, em Portalegre –, mas nenhuma tão próxima que fosse forçado a redescobrir a vida de outra maneira. Até que teve um acidente gravíssimo na auto-estrada e, assoberbado pelo milagre de não ter morrido ninguém, desatou a chorar. Pouco depois começou a escrever o seu primeiro livro, longe de imaginar que, passados três anos, sofreria o verdadeiro embate: a perda da primeira mulher, a editora Tereza Coelho, que morreu em 2009, por negligência médica. E, de certa maneira, foi esse episódio, naturalmente arquivado na caixa da dor eterna, que se foi transformando, transformando, até ser hora de torcer a vida outra vez e levá-la para dentro da ficção.

“O Cruzeta, que não sou eu, tem um bocadinho de mim e de vários amigos e de várias projecções que fiz”, admite Rui, que é fã de “escrever com verdade mesmo na maior invenção” e de, não contando a vidinha, ser capaz de tornar o que nos acontece em momentos importantes para os outros. “Não tenho qualquer problema em usar coisas que me aconteceram. E, ao aproximar-me de uma realidade que não é a minha, tento informar-me o mínimo, que foi o que fiz da primeira vez que me propus a escrever, e agora outra vez, com o suicídio alentejano como fio condutor.” Mas, se no primeiro livro o narrador era um falhado que anda com uma granada no bolso, agora a aventura interior é outra, e o narrador é um sobrevivente, de olhos postos noutros olhos, como quem diz noutro começo. Este em particular começa com a morte apoteótica de um amigo, que leva Cruzeta de volta ao Alentejo, para um funeral e para uma última (será?) reflexão.

“Não vamos usar o lugar comum que é dizer que a realidade ultrapassa a ficção, embora eu acredite em lugares comuns, porque são aqueles em que nos reconhecemos, mas eu aprendi no tribunal, quando escrevi muitas histórias que as pessoas pensavam que eu inventava, que a regra é estranha. E, ainda hoje, quando leio um livro ou vejo um filme que me faz questionar como é que alguém se atreveria a escrever aquilo se não tivesse um fundo de verdade, assumo que tem”, explica. E há, claro, um fundo de verdade, ou mesmo vários, em As Melhoras da Morte. Desde a morte do primeiro português a combater o Estado Islâmico, um desertor da Força Aérea nascido em Portalegre, até à morte do ficcionado Matcha, que no livro se mata com um revólver durante um concerto organizado pelo próprio e que, na vida real, é um amigo que morreu há pouco tempo, mas “não tão tragicamente”.

O novo livro não é, contudo, só sobre pessoas que perdemos, que morrem ou que se matam. É, aliás, muito mais sobre o processo de luto, a naturalidade da morte e a vida que continua apesar disso. Prova-o também a História, porque o interior é igual em todo o lado e os números do suicídio no Alentejo continuam a ser muito superiores à média nacional, mas os anos passaram e o mundo e o Alentejo que Cruzeta conhecia já não são exactamente os mesmos. No primeiro livro a Internet estava no 2G, agora está no 5G, a Rússia invadiu a Ucrânia, Gaza é um inferno a céu aberto e a extrema-direita está a subir em todo o lado, incluindo em Portugal (Rui, isto é, Cruzeta, fala de tudo isso e mais um par de botas). Num momento podemos estar em paz, noutro em guerra. Mas estamos vivos e temos de estar à altura das circunstâncias.

Rui Cardoso Martins
Francisco Romão PereiraRui Cardoso Martins

“Eu acredito muito que, no final, a vida triunfa. Quem já passou por processos de luto – e acontece mais tarde ou mais cedo, é um bocado como ir a tribunal ou apanhar Covid –, reconhecerá que esta personagem faz um luto e faz uma luta contra a ideia da morte. Um amigo nosso diz ‘o meu amigo não morreu, hoje não pôde é vir jantar’, como se a fugir ao assunto. Eu não fujo ao assunto nem o Cruzeta foge ao assunto, mas a verdade é que senti uma pulsão de vida muito grande enquanto escrevia sobre a morte, e isso resolveu também o primeiro livro, que era mais angustiante. Não nego que este também tem as suas partes angustiantes, mas pus tudo o que tinha. Como é que dizem no futebol? Pus a carne toda no assador. Dei tudo o que sabia sobre mim”, assegura. “Uso muito uma frase do filósofo austríaco Wittgenstein. ‘Se não estiveres disposto a conhecer-te melhor, a tua escrita não passará de um engano.’ É assim que se escreve como eu o exijo. Se há coisa que me faz impressão, são escritos que me soam a mentira desde o princípio.”

O que vem a seguir ainda é uma incógnita, mas nunca será postiço (se pedíssemos, juraria com o mindinho). A verdade é que já se andava a sentir como o João da Ega, de Os Maias, que está sempre a dizer que está a escrever as memórias de um átomo. A culpa, atira, foi do Covid, da crise e do trabalho, do tremendo trabalho que tem tido, a dar aulas e a escrever séries televisivas (como Sul, Causa Própria, e Hotel do Rio, esta última ainda em pós-produção). Só nos últimos seis meses é que meteu na cabeça que o novo romance – que contou com a “imprescindível revisão” da mulher, Inês Rodrigues – tinha de sair agora. “Até para apanhar os 20 anos em que terminei o primeiro, embora tenha saído um bocado depois, e já agora os 15 anos da morte da Tereza. Foram 15 anos este Janeiro e eu quase que acabei de escrever em cima dessa data.” Entretanto, continua sem mãos a medir: está a preparar um curso de dramaturgia, que vai dirigir de 8 a 12 de Julho, no 41.º Festival de Almada. O lema é “Ler muito, ver espectáculos, viver mais”. Parece-nos auspicioso.

As Melhoras da Morte, de Rui Cardoso Martins. Tinta-da-China. 256 pp. 18,90€

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