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Se passou recentemente pela rotunda da Rua Salgueiro Maia, deve ter reparado numa gigante pedra que assinala a localização. Chelas é o Sítio do último mural de Vhils em Lisboa e o nome da nova associação criada por um grupo de moradores que trazem Chelas ao peito. Sam The Kid, Nuno Varela (Hip Hop Sou Eu), Adriano Finuras (Associação Torre Laranja), Ricardo Gomes (Masterfoot) e Zé Silva (Chelas Cuts) são os fundadores que querem puxar pelo potencial de Chelas.
O desporto, a educação, a cultura e a sustentabilidade estão na mira do programa em construção desta associação de âmbito social que tem como principal objectivo valorizar o bairro e os seus habitantes, seja através de actividades, seja com uma espécie de rebranding do topónimo Chelas, sobre o qual existe bastante preconceito. Tanto que nos últimos anos foi sendo esquecido e substituído por Marvila, a freguesia onde se insere este grande território. Uma área da cidade muitas vezes lida como periférica, mas que está apenas a cerca de sete quilómetros do Chiado e ainda menos do Parque das Nações.
Samuel Mira (Sam The Kid) foi o elo comum que uniu um grupo de pessoas que já arregaçava as mangas por um bairro melhor. Do “insider” Adriano Finuras, habituado a lidar com o poder local, a Zé Silva, que nunca desistiu de pôr Chelas no nome da sua barbearia, mesmo quando encontrou resistência. Todos se queixam do plano que tem vindo a ser posto em prática na última década pelo poder local de esquecer que o nome Chelas alguma vez existiu. Ou a Zona J (hoje Bairro do Condado), a Zona M (Bairro do Armador) ou a Zona I (Bairro das Amendoeiras), entre outras tantas.
“Às vezes as pessoas são manipuladas sem saber que nos últimos dez anos houve um caminho que foi nitidamente planeado, não foi do nada. Não foi alguém que um dia pensou ‘vamos começar a mudar aqui o nome das coisas’. Quando decidimos gritar, quase que estava a desaparecer [Chelas]”, lamenta Ricardo, conhecido por Pipoca e presidente da Masterfoot, empresa que organiza torneios de futebol e futsal. Adriano explica que a ideia base da nova associação é “meter Chelas no sítio em que tem de ser colocada, porque aqui há muita coisa boa que se faz”.
O preconceito social e a falta de vontade política dominaram grande parte da conversa que decorreu na sede da associação desportiva Torre Laranja, presidida por Adriano. É claro o sentimento de injustiça sentido por quem ali nasceu e cresceu. “A taxa de abstenção em Marvila é mais de 60%. As pessoas desistem, mas o próprio poder político também já desistiu, é tudo uma consequência”, diz Adriano que, juntamente com os outros fundadores, quer promover o interesse pelo bairro dentro da própria comunidade e focar o nome em coisas positivas, sem ser a actual situação de que “o bom é Marvila e o mau é Chelas”. Mas saúdam a vontade do actual executivo da Junta de Freguesia de Marvila de os ouvir, tornando-se um dos parceiros em conjunto com a Câmara Municipal de Lisboa (CML) e os vizinhos Rock in Rio e até a RTP.
A aproximação ao município começou com um pedido de reunião que Samuel fez a Fernando Medina, presidente da CML. “Ele sabia dos planos para acabar Chelas. Era tudo verdade. Mas não sabia que isto era a nossa identidade. Entretanto baptizámos a cena, mas ainda não sabíamos o que era. Se era um movimento… Quem disse para sermos uma associação foi o presidente Medina”, recorda. A resistência a organizarem-se como associação veio do que dizem ter vindo a observar à sua volta.
“É toda a gente atrás de dinheiro, com joguinhos entre autarquias, associações e instituições. Muitas associações que trabalham aqui são associações de fora que vêm aqui gerar o seu próprio emprego, em orçamentos de 50 e 60 mil euros em que 30, 40 mil euros são recursos humanos", conta Ricardo. E Nuno, fundador do projecto editorial Hip Hop Sou Eu, revela que já começaram a “pôr o dedo na ferida”. “Eles sentiram que já não estavam aqui como estavam", diz, referindo-se a uma das associações que contactou. “E como existe essa, existem dezenas.”
Ricardo, numa conversa que estava quente, remata: “A verdade é que há muito dinheiro, só que está mal aproveitado. E é vendido para o exterior, e vamos outra vez ao preconceito, que somos uns coitadinhos. Agora com a associação, para além de podermos fazer estes projectos, acima de tudo nós podemos pressionar, chatear, perguntar e receber pessoas. Cada um de nós é agregador de outras pessoas, seja da sua relação pessoal ou profissional”.
Deixar a marca
“Neste momento temos sorte dos nossos parceiros quererem aprender, quererem saber”, sublinha Samuel. A parceria com o Rock in Rio vai começar no novo restaurante Casa de Pedra, no Parque da Belavista, que se apresenta também como um centro cultural com música, eventos literários e outro tipo de actividades – um projecto de Roberta Medina e da equipa do festival. “Vamos fazer uma curadoria quinzenal só com talentos locais. Inicialmente estamos só na música, mas pode-se expandir para outras áreas, até para um podcast, um comediante, qualquer coisa”, explica Samuel, que ficou com a pasta da cultura e faz a curadoria do projecto Prata da Casa.
E também aqui já começaram a passar a mensagem: “Alguém lá perguntou-me se isto era o Bairro da Belavista. E eu disse que era o Parque da Belavista, na zona N1, o conhecido Bairro da Flamenga. E ele: ‘Então, vais-me dizer que as grandes estrelas do mundo tocaram em Chelas?’ Sim, tocaram em Chelas. O Parque da Belavista originalmente até se chamava Parque de Chelas. E eles têm interesse em saber a história.”
A associação também vai ocupar o meio audiovisual, mais concretamente o canal de YouTube da Antena 3, numa parceria com a RTP. Cada episódio inclui um intérprete de hip-hop a apresentar um tema e, embora os músicos não tenham de ser necessariamente de Chelas, o programa será sempre filmado num espaço do bairro. “Pode ser uma música nova, a música sete do álbum de 2006, mas que nunca cantaste porque é calma ou assim”, exemplifica, sem adiantar uma data de estreia, embora já esteja em fase de edição. “Fica um produto para três meses, porque cada episódio é só uma música e são 12 músicos. Escolhemos um dia da semana e durante três meses estamos a contribuir para a cena de Chelas é o Sítio.”
Além do mural de Vhils que assinala Chelas na Rua Salgueiro Maia, a associação está a preparar uma intervenção no equipamento urbano com nova sinalética, com a ajuda do Halfstudio, que desenhou o logótipo e ajudará a desenhar os futuros totens fronteiriços, com autorização da Junta de Freguesia de Marvila e da CML. “A borrada que as autarquias passadas fizeram quando puseram a palavra Marvila em 90% das coisas que diziam Chelas não faz sentido absolutamente nenhum. Queres ir ao Parque da Belavista e diz ‘direita Marvila’, ‘esquerda Marvila’ e tu não sabes onde estás. Quando vais na Segunda Circular diz ‘Olivais Sul’ e o que faz muita falta aqui, em comparação com outras freguesias, é mesmo isso: Parque da Belavista, Bombeiros, Piscina, Futebol de Praia, Escola, Farmácia, essas coisas – mais do que até dizer Chelas”, descreve Samuel.
Apesar de não concordarem com os nomes mais recentes atribuídos às antigas Zonas, que também vão estar incluídas na sinalética, todos terão o seu lugar. Ou seja, além de Zona J também se irá ler Bairro do Condado. “Nós até damos o exemplo, somos inclusivos”. E os fundadores têm uma palavra de amor a dizer a Marvila: “Nós não queremos que Marvila saia, nós somos Marvila. Dá-me uma camisola de Marvila que vou vesti-la garantidamente. O que não pode ser é não poder usar a camisola de Chelas”, nas palavras de Adriano.
A camisola já se veste na página de Instagram da Chelas é o Sítio, onde poderá aferir se será cumprida uma promessa de Nuno para o futuro da associação: “Para uma coisa má vamos ter sempre cinco coisas boas”.
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