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Samuel Úria: “Aquilo que me motiva e onde ponho os olhos não é no espelho, é naqueles que são melhores do que eu”

A Time Out esteve à conversa com o cantautor de Tondela que acabou de lançar o seu mais recente disco, ‘2000 A.D.’.

Hugo Geada
Escrito por
Hugo Geada
Jornalista
O cantautor de Tondela editou o seu sexto disco, 2000 A.D.
Joana LindaO cantautor de Tondela editou o seu sexto disco, 2000 A.D.
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O plano não era este. Samuel Úria estava farto de ser negativo. Canções do Pós-Guerra, editado em 2020, já tinha sido um olhar negro sobre o mundo, numa fase em que estávamos confinados às nossas casas, por causa da covid-19, e, todos os dias, recebíamos actualizações mirabolantes das aventuras de Donald Trump na Casa Branca. Volvidos quatro anos, o cantautor de Tondela não vê um cenário mais risonho. O mundo continua envolto num caos, o que não lhe permitiu ser indiferente.

Perante tal cenário, o artista a criou 2000 A.D., o seu mais recente disco, lançado esta sexta-feira, 6 de Dezembro. Úria regressou a esta marcante data, que devia ter trazido carros voadores e outras novidades, mas trouxe apenas desilusões. Isto inspirou-o a escrever canções sobre o desencantamento que trouxe o fim do século. Falámos sobre este novo trabalho e as inquietações que o inspiraram. Para ouvir ao vivo, nos Coliseus de Lisboa e Porto, a 11 e 17 de Outubro de 2025, respectivamente.

Quando é que surgiu a vontade de começares a trabalhar em 2000 A.D.? 
Eu tenho adormecida em mim, sempre, uma vontade de fazer canções. Nunca me falta vontade. O interregno entre a escrita de canções e os discos que estão a ser preparados deve-se a alguma preguiça e uma falta de necessidade porque ainda estou a trabalhar em promover discos anteriores. Neste caso, a necessidade já tinha aparecido há quase dois anos, porque o anterior, Canções do Pós-Guerra, saiu durante a pandemia e tinha esgotado a sua vida em termos de salas de espectáculo em Portugal. Nessa altura, já tinha começado a pensar no que é que poderia ser o disco, mas houve muitos atrasos, a maioria da minha parte. Em Outubro de 2022, comecei a escrever canções para este disco, só que a maior parte não fazia sentido neste trabalho, mas sim para um álbum futuro. Esta incompatibilização promoveu esta demora. 

Este processo diferente dificultou a criação do disco? 
Sim. Estou habituado, normalmente, a corresponder à necessidade. Em pouco tempo consigo concentrar as ideias que ando a apanhar durante o meu tempo de interregno, porque quando não estou a escrever canções, não deixo de estar a captar ideias, a fazer alguns apontamentos e, normalmente, quando é altura de gravar um disco, eu retiro-me e as ideias que estão soltas, de uma forma muito rápida, são concentradas nas canções que quero fazer. Neste caso, houve uma dificuldade maior em encontrar uma identidade que me apetecesse desenvolver enquanto um conceito de disco. Tudo isto fez com que fosse um processo muito moroso. 

Quando é que chegaste, finalmente, à ideia do disco? 
Normalmente, há uma canção que me ajuda a fazer o clique, porque tem a capacidade para agregar as ideias que quero manifestar. Neste caso, foi a 2000 A.D.. Pareceu-me que poderia servir como uma casa-comum onde conseguiria encaixar várias temáticas e reflexões, nomeadamente, sobre a passagem do tempo e balanços naturais. Além disso, fez-me olhar para de outra maneira para canções que tinha deixado de parte. O momento em que ficou concluída serviu de mote para consolidar este disco novo. 

Podes explicar o título, “2000 A.D.”? 
Esta é uma canção com um reflexo — não propriamente positivo — sobre aquilo que foi o último quarto de século. Sinto que existe um balanço pouco favorável comparado com os tempos em que era criança. Cresci sob a alçada da ideia que o ano 2000 ia ser um marco de transição e de progresso. A canção fala sobre isto e oferece, também, uma perspectiva biográfica. 

Onde é que entra o Samuel nesta história? 
Durante o século XX, fui uma pessoa do campo e, no século XXI, tornei-me numa pessoa da cidade. Isto até me remete para a história do rato do campo e o rato da cidade. Canto sobre uma pessoa que, um dia, acorda e está na cidade. Apesar de ver muita coisa agradável, isto não corresponde à ideia de progresso e ao que seria o paradigma do futuro. O resto do disco e as suas reflexões brotam daí. Por exemplo, a canção 1998, conta um episódio da minha vida que, de uma forma simbólica, aborda o desencantamento que chegou com o fim do século, depois de perceber que o novo milénio não me ia trazer esclarecimento. Pelo contrário, só ia trazer mais confusão. 

Este disco é muito feito de olhares para o passado. Consideras-te uma pessoa nostálgica?  
Sim, sem sombra de dúvida. No entanto, a nostalgia neste disco, exceptuando a Daqui Para Trás, também é vista com algum desencantamento. É o perceber que as desilusões com o presente e boa parte dos receios com o futuro está enraizada num excesso de confiança do passado e como acreditávamos que tudo ia correr bem. Pensava que já estávamos vacinados contra certas questões, por exemplo, políticas, mas agora entendo que foi uma ingenuidade. De certa forma, isto é um clamor pelo regresso desta perspectiva. De achar que estou protegido, de uma forma quase poética, pela ignorância. Mas não me excluo, quero contribuir para criar uma cúpula de pacificação entre as pessoas. Não quero que seja algo exterior a mim. 

Numa altura em que a cultura pop está muito virada para o passado e a nostalgia, por exemplo, com o Stranger Things a focar-se nos anos 80, tu decidiste olhar para os anos 2000. Houve algo, além da questão do Y2K, que te fez focar neste período temporal? 
O ano 2000 teve um grande peso e é uma década muito icónica. Algo que me inspirou foi um sketch do Conan O'Brien, In the Year 2000, onde são feitas previsões rocambolescas sobre esta data. Mas o que tem mais graça, foi que ele continuou a fazer esta piada mesmo depois de 2000. Esse anacronismo influenciou a minha forma de pensar sobre este disco. Quase a falar do sobre o ano 2000 como um futuro ficcional que ainda não foi cumprido e ficcional porque nós não fomos capazes de corresponder às expectativas. 

Não nego o património que me antecede, mas quero ter propriedade e o cunho de conseguir libertar-me

E existe um lado estilístico que te influenciou? 
Há uma estética pop, mas tento refutar a ideia de que estou a brincar ao passado. Por exemplo, na 1998 inspirei-me sobretudo em banda sonoras de spaghetti westerns. Não para ser um exercício de estilo de um género musical do passado, mas exactamente para o contrariar. Fiz uma desconstrução, acrescentei uns sintetizadores, um omnichord e uma referência aos Blind Zero (a banda que tocou no meu baile de finalistas), tudo coisas que não têm nada a ver com este estilo. Apropriei-me do western e tornei-o em algo meu. Esta negação do passado surge como a solução para aquilo que estou a fazer hoje. Não nego o património que me antecede, mas quero ter propriedade e o cunho de conseguir libertar-me, e ironizar, tudo aquilo que me está a prender ao passado.

Só ficou a faltar fazer uma música de nu-metal. 
[Risos.] Como nos anos zero já era adulto, o nu-metal era algo que via com alguma desconfiança. Apesar de ter ouvido muito daquilo que conduziu a este estilo. Os Rage Against The Machine marcaram muito o meu secundário e ainda é uma das minhas bandas preferidas. 

O que é que andava o Samuel Úria a fazer nos anos 2000? 
Foi uma altura em que intensifiquei a minha produção musical a solo. Até aí tinha trabalhado sobretudo com bandas, coisas mais barulhentas, como ska ou trip-hop, e comecei a desacelerar. Foi quando comecei a ouvir mais cantautores como Bob Dylan, o Leonard Cohen, o Tom Waits ou o Nick Cave. Isto deu-me vontade de experimentar esta estética. Coincidiu com a fase em que deixei de viver em Tondela e, como nas terras por onde andei andava um pouco desacompanhado e tinha só a companhia da guitarra, então o meu lado mais folk começou a aparecer mais aí. Ligo muito este início do século com as minhas manifestações mais solitárias na música. 

O teu último disco, Canções do Pós-Guerra, foi lançado em 2020. Nessa altura, estávamos a enfrentar uma pandemia e o primeiro mandato do Trump. Agora, estamos a entrar num novo mandato deste político e, ainda que não estejamos a viver em quarentena, observamos guerras e invasões em vários países. Achas que estamos a viver um período ainda pior? 
É possível. O paradigma actual complicou a criação deste novo trabalho. Quando me propus a fazer este disco, enviei uma sinopse para a SPA — estava a candidatar-me para receber apoios financeiros — onde dizia que queria contrariar o que fiz no disco anterior. Era um trabalho mais negativo e queria que o 2000 A.D. fosse o contraponto alegre, mas simplesmente não consegui. Ia ser um disco alienado se assim o fizesse. Até as canções mais alegres trazem sempre um amargo de boca que tem a ver com os tempos em que vivemos e aos quais eu não consigo escapar. Não estou a tentar ser um cronista do tempo em que estou a viver, mas não consigo evitá-lo. Estou a escrever no presente e as canções são mais um exercício de reflexão do que um exercício de alienação. 

Neste disco, existem referências ao 25 de Abril. Elas surgem como contraponto a esta negatividade? 
Depois de fazer estas reflexões do passado, presente e projectando o futuro, era importante esta ideia estar aqui presente. Não é por serem os 50 anos do 25 de Abril, esse número redondo, que deve ser algo clamado. É algo que não deve ser interrompido e a que nos devemos agarrar.

Estavas a falar sobre o receio de fazer canções apáticas. Enquanto um artista que cresceu a ouvir que “a cantiga é uma arma”, acho que a canção continua a ter este poder? 
Espero que sim. É a minha arma de eleição. Posso estar completamente iludido a achar que isto pode frutificar de alguma maneira, mas também não quero que isso me faça esmorecer nessa tentativa de usar as canções como o mecanismo preferencial da minha mensagem. Tenho sempre a esperança e a vontade que as pessoas, pelo menos, queiram ouvir-me a cantar. 

É por isso que continuas a adoptar a postura de cantautores do 25 de Abril, como o José Mário Branco ou o José Afonso? Continua a ser a atitude certa para usar a música como protesto? 
Para mim, é impossível contrariar o legado desses artistas. Seja na maneira como eles escreviam ou nas próprias temáticas, que não eram propriamente as mais pop. Não estou a inventar nada, até na forma de escrever em português. Há muitas coisas que são completamente minhas. Sei que uso coloquialismos que não são transversais ao português comum, tem apenas a ver com a minha própria expressão. Mas não estou a fazer isto em cima das minhas pernas. Estou a fazer isto em cima dos ombros de pessoas que já o fizeram antes, com ambições, histórias e contextos da época, aos quais eu não sou invulnerável. Nesse sentido, estou a carregar algumas destas tochas. 

O disco acaba com “Xico da Ladra”, que é uma história sobre um amigo que morreu.  
Esta canção é um pouco extraterrestre no disco. Embora esteja a lamentar a morte, esta, sobretudo, celebra uma vida. O olhar colectivo pode-me deixar decepcionado, mas, às vezes, basta concentrar-me no olhar individualizado de pessoas e amizades sobre as quais vale a pena investir para mudar de ideias. É mais importante fazer um retrato social a partir dos melhores e não dos piores. 

Enquanto escritor, foi importante fechar o disco com este momento mais pessoal e de esperança? 
Era a mensagem necessária para acabar o trabalho. Tem a capacidade de equilibrar aquilo que podia ser um excesso de negatividade e acabrunhamento. As outras canções são olhares à minha volta ou para dentro de mim próprio e esta canção não tem nada disso. Quando digo que quero ser como outra pessoa, é um eu completamente submisso à ideia de alguém que considero ser melhor do que eu. Era o ponto que precisava para acabar o disco. Não só com esse lado esperançoso, de alguém que funciona como uma semente, mas também uma exclusão da minha própria identidade. Aquilo que me motiva e onde ponho os olhos não é no espelho, é naqueles que são melhores do que eu.

Coliseu dos Recreios. 11 Out. 21.30. 23€-35€

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