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Se escrever sobre dança é andar à volta dela, no caso da obra de Anne Teresa De Keersmaeker é preciso caminhar na harmonia entre a música e a dança, na repetição, na emoção da aceleração e desaceleração, nos padrões de movimento. A cada entrevista, a coreógrafa e bailarina belga, de 63 anos, procura articular o significado da sua (e de toda a) dança, apesar de preferir dançar a falar, como tantas vezes já disse. Até porque é com a dança que se relaciona com o mundo, usando o corpo humano como instrumento, não apenas de uma forma mecânica, mas emocional. “Coreografar é organizar o espaço entre nós, por isso é sempre uma questão social. É escrever as pessoas”, descrevia ao jornal Expresso, em 2021. Um ponto torna-se uma linha, uma linha torna-se uma espiral, um círculo abre-se e fecha-se, com a Humanidade toda lá dentro.
“Mais do que qualquer outra arte, a dança celebra o que nos torna humanos. As pessoas trabalham com o corpo, e com a dança o que fazemos é usar a mecânica do corpo, os sentidos, o que o corpo usa e carrega, e as suas emoções que tornam todas as experiências únicas”, dizia ao jornal Público, em 2012. “Não é como a música, que pode ficar inscrita numa partitura, não é como um quadro, que pode ser pendurado. Se não for dançada, a dança não existe.”
Nas últimas quatro décadas, a dança de Anne Teresa De Keersmaeker tem existido nos palcos portugueses. “Acho que, na Europa, Lisboa é a cidade que mais viu o trabalho da Rosas. Isso deixa-me muito feliz”, recordava ao semanário Novo, em 2021. De Keersmaeker pisou a capital portuguesa pela primeira vez em 1987, nos míticos Encontros Acarte, da Gulbenkian. Apresentou Rosas danst Rosas (1983), peça-chave no seu percurso que deu nome à sua companhia, Rosas, e a colocou no mapa da criação contemporânea. Uma década mais tarde, em 1998, voltou a fortalecer a relação com a cidade, criando pela primeira vez um bailado para uma companhia que não a sua: The Lisbon Piece (1998), com a Companhia Nacional de Bailado. De todas as vezes que esteve em Lisboa, destaca-se o ano de 2012, quando inaugurou o programa Artista na Cidade (bienal que visava dar uma visão abrangente da obra de um autor de relevo das artes de palco, e que foi interrompida com a pandemia). Mais recentemente, em 2021, viu o seu trabalho reconhecido com o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva para a Divulgação do Património Cultural. No discurso, lembrou como a coreografia pode, afinal, estar mais próxima do que imaginamos. “O que vimos nesta crise pandémica foi uma nova forma de coreografia. Estamos numa multidão, a executar uma performance de procedimentos sanitários. Nesta coreografia, assistimos a uma desconfiança entre os corpos, à falta de toque, a rituais de monitorização”, comparou.
A bailarina e coreógrafa belga está de volta a Portugal este mês, para falar de outros rituais. A bailarina e coreógrafa belga está de volta a Portugal este mês, para falar de outros rituais. Esta sexta-feira e este sábado, 20 e 21 de Janeiro, no Rivoli, no Porto, e a 25 e 26, na Culturgest, em Lisboa, mostra Mystery Sonatas/for Rosa, uma peça com base nas Sonatas de Mistérios (também conhecidas por Sonatas do Rosário), uma tradução musical dos 15 mistérios sagrados da Virgem Maria, escritas no séc XVII (por volta de 1676) por Heinrich Ignaz Franz von Biber. Em palco vão estar, além dos bailarinos, a violinista francesa Amandine Beyer e o seu conjunto Gli Incogniti.
A dimensão espiritual é uma das leituras possíveis no desenho coreográfico de Anne Teresa De Keersmaeker para esta criação, mas não a única. “Não há especificamente uma narrativa religiosa”, explica De Keersmaeker à Time Out, por telefone, a partir de Bruxelas, onde está sediada a sua companhia. “[As referências bíblicas] estão presentes, mas não são explicitamente apresentadas. Acho que é mais sobre a carga emocional, sobre a experiência humana universal”.
Para Mystery Sonatas/for Rosa, mergulhou numa pesquisa profunda sobre o simbolismo da rosa, flor que dá nome à companhia que fundou em 1983. É amor, paixão, beleza, segredo, mistério, mas também “resistência”, lembrando que “não há rosas sem espinhos”. Por isso, esta peça é assumidamente dedicada a mulheres de resistência. Mulheres revolucionárias como a pintora Rosa Bonheur, a filósofa Rosa Luxemburg ou Rosa Parks, activista negra que, em 1955, recusou dar o seu lugar no autocarro a um homem branco, como exigia a lei, motivando protestos liderados por Martin Luther King Jr. De Keersmaeker particulariza a homenagem a mais duas Rosas: Rosa Vergaelen (“uma professora que tive e alguém que a um nível pessoal foi muito importante”, diz, sucintamente) e simplesmente Rosa, uma jovem activista climática, com 15 anos, que morreu nas enchentes belgas de 2021. “Queria dedicar a [obra a] estas cinco mulheres de resistência, de campos diferentes”, afirma.
Estas mulheres, tal como as referências bíblicas, são evocadas, e não mencionadas explicitamente. Permite que a homenagem de Mystery Sonatas/for Rosa se amplie, que se alastre a outras Rosas. “Em Portugal, também têm uma Rosa”, diz a coreógrafa belga, navegando nas suas memórias. “Alguém me contou esta história”, “desta mulher, desta princesa”, “que queria dar comida aos mais pobres”, aludindo à lenda do Milagre das Rosas, em que a Rainha Santa Isabel, quando confrontada por D. Dinis, transformaria o pão que levava escondido no regaço em rosas – dando origem à expressão “São rosas, senhor”.
É em torno da rosa que está o texto, a intenção, mas também a geometria que conduz o espectáculo. No objecto, as camadas das pétalas sobrepõem-se, repetitivamente, de forma circular. São pistas para o desenho da coreografia? “Até certo ponto, sim”, diz De Keersmaeker sobre o possível paralelismo com a estrutura da flor. “É a forma mais democrática, porque toda a gente tem uma relação com o centro”, continua.
Círculos, espirais e pentágonos desenham-se no chão. A poesia geométrica de Anne Teresa De Keersmaeker é um mapa do movimento para os bailarinos. Repetitivas, as figuras evocam o desabrochar da flor. Dançar até pode ser um acto de resistência, mas antes disso “é um acto de celebração”. “[Dançar] pode ter um poder, pode ter um efeito de cura. É organizar pessoas. É algo que fazemos enquanto comunidade. Usamos o corpo para a prática talvez mais ecológica. As pessoas trazem a música e a dança para os grandes momentos da vida. É um acto de celebração, de luto, e pode ser um acto de reflexão”.
Culturgest – Auditório Emílio Rui Vilar (Lisboa). 25-26 Jan. Qua-Qui 21.00. 24€.
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