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‘Scenes From a Marriage’ lembra um sonho lindo, quase acabado

A nova série da HBO revisita, a partir de segunda, o ensaio sobre o amor conjugal que Ingmar Bergman realizou para televisão em 1973. Já não sabemos o que é a felicidade.

Hugo Torres
Escrito por
Hugo Torres
Director-adjunto, Time Out Portugal
Scenes from a Marriage
Photograph: HBO
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Michael Ellenberg era um big shot de Hollywood com um sonho. Durante a primeira metade da década passada, período que muitos consideram o pico da actual época dourada da televisão, Ellenberg era o manda-chuva da HBO para as séries dramáticas. Da secretária do senhor vice-presidente saíam ideias como True Detective, The Leftovers, Westworld ou Big Little Lies. A Guerra dos Tronos também por lá passava, a despacho. O executivo tinha mão em alguns dos projectos televisivos com mais impacto do nosso tempo.

Todavia, quando deixou o cargo, no início de 2016, havia uma produção em particular que se mantinha frustrantemente na gaveta: um remake de Cenas da Vida Conjugal (1973), de Ingmar Bergman. E era esse o plano inaugural para a empresa de produção que criou no ano seguinte à saída da HBO, a Media Res. Hagai Levi (Terapia) e Amy Herzog foram imediatamente anunciados como a dupla criativa que iria pôr as coisas a andar. Nem assim. The Morning Show, a série de prestígio da Apple TV+, estreada em 2019 e prestes a regressar para uma segunda temporada (17 de Setembro), impôs-se no calendário da Media Res. Depois, Michelle Williams desistiu da série, por conflito de agenda. Parecia um projecto enguiçado. Mas eis que estreia agora, finalmente.

Não vem tarde. Scenes From a Marriage chega à HBO na segunda-feira, 13 de Setembro, com o potencial de se tornar numa das séries do ano. Retrata o casamento entre Mira (Jessica Chastain, que substituiu Williams) e Jonathan (Oscar Isaac), racionalmente feliz, oleado e funcional, embora alienado face às pequenas frustrações, à sensação de marasmo e desistência, à mágoa por decisões irremediáveis, aos desalinhos de entendimento entre o que é ou pode ser uma relação conjugal longa, a paixão e o amor, o desejo e a monogamia, as inseguranças no sexo tantos anos depois, o equilíbrio precário entre a educação da filha, o trabalho de um e as obrigações do outro, aos sentimentos de culpa, às hierarquias domésticas, às assimetrias que se impõem, sorrateiras, indesejadas.

Ela é uma gestora de sucesso no sector das tecnológicas; ele, um professor de filosofia que ganha menos, sai menos e tem mais tempo para cuidar da filha, ainda muito pequena. A história começa com uma entrevista a ambos feita por uma estudante de doutoramento, cuja tese versa sobre casamentos “bem sucedidos” em que é a mulher quem mais contribui para a economia familiar. Mas qual é a definição de sucesso? Duradouro. E esse é o gatilho para as “cenas” seguintes, que vão desconstruir a convenção social de que os casamentos são, ou devem ser, para sempre; de que família é uma unidade indivisível (tanto mais se houver filhos).

Bergman escreveu a minissérie original tendo por base a conflituosa relação dos pais, mas também a sua própria experiência, que à altura já incluía quatro divórcios e um caso de vários anos com Liv Ullmann, que interpreta a mulher em Cenas da Vida Conjugal, contracenando com Erland Josephson. Os dois actores – e respectivas personagens – voltariam a cruzar-se no derradeiro filme do cineasta, Saraband (2003). O ensaio sobre a imperfeição do amor deixou lastro. Desde logo na sociedade sueca. A minissérie foi um sucesso tal que teve duas consequências imediatas: primeira, dos seis episódios com um total de quatro horas e 43 minutos montou-se um filme com metade da duração (1974); segunda, os números de divórcios e de consultas de terapia de casal dispararam no país. A ficção era real.

Scenes From a Marriage, a reinterpretação americana, mantém a essência do original: uma produção de baixo orçamento em que o casal protagonista ocupa quase a totalidade do tempo no ecrã, conversando, discutindo, medindo distâncias. A realização de Levi será menos frugal, aos cenários, contemporâneos, e aos diálogos faltará o cunho de Bergman, mas ninguém esperaria um decalque. Há, contudo, uma diferença relevante: desta feita, é a mulher a personagem confiante, autocentrada, embora o homem, ao contrário do que acontecia com Ullmann, não se defina apenas em relação à família e aparente ser quem está mais bem resolvido. Os papéis sobrepõem-se. As fronteiras esbatem-se. Mais não seja porque o facto de se apresentarem como o pai cuidador e a mãe ausente provoca um certo efeito narrativo, na percepção que as personagens têm de si próprias (sobretudo Mira) e que passa para nós, que na melhor das hipóteses estamos a combater as leituras que a herança e a aculturação patriarcais estão a forçar nos nossos cérebros progressistas.

Com cinco episódios de uma hora cada, o ansiado projecto de Michael Ellenberg (que, diga-se, tem entre os produtores executivos um dos filhos de Bergman, Daniel) talvez venha a ser comparado a filmes recentes como Marriage Story, Malcolm & Marie ou até Locked Down, e o mais provável é que saia beneficiado. Scenes From a Marriage é de outra linhagem.

HBO. Seg (estreia).

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